Trump acha que mundo é feito de inimigos, diz ex-embaixador dos EUA no Panamá

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SYLVIA COLOMBO
BUENOS AIRES, PE (FOLHAPRESS)

Uma das promessas mais inquietantes feitas pelo presidente eleito americano, Donald Trump, é a de retomar o Canal do Panamá, inaugurado em 1914. Seu sistema de eclusas reduz significativamente o tempo e a distância das rotas marítimas entre a costa leste e oeste dos Estados Unidos e de outras regiões do mundo, evitando a longa navegação pelo cabo Horn, no extremo sul da América do Sul.

A construção do canal foi controversa por vários motivos -políticos, sociais e éticos. A França tentou construir a passagem no final do século 19, mas enfrentou dificuldades técnicas e altas taxas de mortalidade entre os operários, que sofreram com doenças.

Posteriormente, os EUA assumiram o projeto, apoiando a independência do Panamá da Colômbia em 1903 e facilitando a criação de um novo governo panamenho. Este rapidamente cedeu o controle do canal aos americanos. Amontoaram-se acusações de desrespeito aos direitos humanos dos trabalhadores locais.

John D. Feeley, embaixador americano no Panamá entre 2015 e 2018, diz que ouve o discurso que motiva o avanço trumpista sobre o canal há décadas. Mas, acrescenta, a ideia de que o país está sendo vítima de extorsão no canal “não tem fundamento factual”. Segundo os seus cálculos, os EUA provavelmente pagam mais com o chá e o café no Pentágono do que com o pedágio da passagem.

Ele também alerta para os possíveis prejuízos do “maior esforço de deportação da história” propagandeado pelo republicano, que tem como alvo justamente os latino-americanos. “É uma percepção de um mundo de inimigos, e não de colaboradores.”

PERGUNTA – Por qual a razão Trump quer a retomada do Canal do Panamá? Pelo que dizem especialistas, o canal não daria grandes lucros e lutar por ele causaria uma dor de cabeça.
JOHN FEELEY – Sim, mas desde os anos 1980 eu ouço essa retórica, geralmente por parte dos republicanos, de que “fazer algo por outro país e não ter nada em troca” é errado. É por isso que o tema do canal se encaixa bem no discurso Maga [acrônimo para “faça os EUA grandes novamente”, o slogan trumpista], os militantes gostam.

P – Mas é algo que ele, tecnicamente, pode fazer?
JF – Sim, claro. Temos capacidade militar de invadir o Panamá como fizemos em 1989. Mas aquele era outro mundo, não? E devolvo a pergunta: onde está o eleitorado americano que vai apoiar outra guerra estrangeira depois do que aconteceu no Afeganistão?

P – O que está acontecendo com o canal que justificaria essa preocupação?
JF – Estamos tendo menos chuva por causa das mudanças climáticas, o que significa que as eclusas operam com menos frequência. Eu acredito que baixaram os trânsitos diários para 26, sendo que o máximo é 46, e agora eles estão em torno de 42 ou 43.

Tudo fica caro quando a operação é feita assim. Obviamente, de acordo com as leis do capitalismo, se há pouca oferta e não muita demanda, os preços se ajustam. Donald Trump deveria entender isso sendo um homem de negócios, mas evidentemente não o faz.

Acredito que ele queira criar a ideia de que os americanos estão sendo ou são vítimas de extorsão por meio de tarifas, preços ou pedágios exorbitantes no canal.

Mas essa declaração não tem fundamento factual. Em razão do simples fato de que os EUA não possuem uma frota naval comercial. Os navios que transitam pelo Canal do Panamá são chineses, taiwaneses, dinamarqueses. Tem bandeiras da Libéria, do Panamá, de Taiwan, de vários países, menos dos EUA.

P – Há dados que comprovam esse aumento de tarifas no canal?
JF – Fui atrás disso. No site da Autoridade do Canal do Panamá existem dados de trânsito desde 1999, ou melhor, desde o primeiro dia de 2000. Houve aproximadamente 335 mil trânsitos [daquela data até hoje].

Menos de 3,5% foram de navios com bandeira americana e, desses trânsitos, a maioria -a grande maioria- eram militares, da Marinha Americana.

E a Marinha Americana paga um custo extremamente reduzido, que não é baseado no valor da mercadoria a bordo, mas no calado [a parte submersa do navio] e no peso. E aqui vai outro dado que está no mesmo site e é incrível: em 25 anos de administração do canal como um pedágio marítimo comercial, o Panamá arrecadou menos de US$ 24 milhões. Menos de um US$ 1 milhão por ano. O que se faz com isso?

Qualquer pessoa com dois dedos de testa reconhece imediatamente que eles gastam mais com café ou chá no Pentágono por ano do que com os trânsitos pelo Canal do Panamá.

P – Como o senhor vê a questão da migração diante dessas novas políticas de Trump?
JF – Acho que as pessoas continuarão chegando, mesmo que seja por outros caminhos, mas vão. E quem está lá, fará de tudo para não ser expulso. Será um tema de grande conflito social.

P – Com a política de expulsão dos imigrantes em situação irregular, parece que se criou uma ideia de que o outro, o latino-americano, é um monstro.
JF – Sim, é um conceito de isolamento total, de um “America First” [EUA em primeiro lugar, outro dos slogans trumpistas] amoral que realmente não é amigo do mundo. É uma percepção de um mundo de inimigos, e não de colaboradores.
Mas também temos que pensar no que será o fenômeno de uma alface que custa caro. Porque se nos EUA uma alface hoje custa cerca de US$ 2 (R$ 12), sem os imigrantes, serão US$ 50 (R$ 300).

P – Há falhas do lado de quem pede o visto que adicionam dramaticidade a esse sistema?
JF – Sim, a base do nosso sistema legal é antiga, dos anos 1980, e é centrada na ideia da reunificação familiar. Não considera as necessidades do mercado de trabalho nem as questões complexas que o mundo vive hoje, os problemas da América Latina. Ao mesmo tempo, temos um sistema de asilo político que nunca foi devidamente financiado e ao qual nunca demos os recursos necessários.

Para chegar ao que chamamos de ordem final de deportação, um migrante deve apresentar seu caso de asilo. Esse caso deve ser julgado por um juiz de imigração, que é diferente de um juiz comum. O juiz de imigração avalia a pertinência [do pedido] com base em cinco grupos definidos nas Convenções de Genebra sobre refugiados.

Esses grupos são: raça, etnia, gênero, culto ou religião, e o quinto, que é mais indefinido, fala sobre o pertencimento a um grupo social perseguido no país de origem. É nele que tivemos as interpretações recentes mais polêmicas, quando mulheres vítimas de violência doméstica e pessoas LGBTQIA+ receberam essa qualificação. Tudo cabe nesse quinto grupo porque ele é amplo e subjetivo, falta regulação, assim como a questão dos exilados políticos.

Além disso, temos apenas aproximadamente 700 juízes em um sistema com mais de 3 milhões de solicitantes. Sabemos que mais de 85% dos casos serão rejeitados porque não atendem aos critérios de asilo político.

São simplesmente pessoas pobres, desesperadas, que querem comer McDonald’s e dirigir um Uber em Baltimore. E morar nos EUA. E por mais que isso me comova humanitariamente, isso não é asilo político.

Como diferenciar essas pessoas de quem é de fato perseguido por uma “mara”, por um grupo criminoso, ou alguém cuja data de execução foi definida por um regime autoritário?

A lei migratória americana também precisa mudar se se quer menos imigrantes e que eles tenham determinados requisitos.

RAIO-X | JOHN FEELEY, 64

Diplomata, foi embaixador dos EUA no Panamá entre 2015 e 2018, tendo renunciado devido a diferenças com a administração Trump. Começou a trabalhar no Departamento do Estado em 1990, onde hoje é membro do Senior Foreign Service. Tem grande experiência na América Latina. De 2004 a 2006 trabalhou nos gabinetes de Colin Powell e Condoleezza Rice.

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