Até quando mulheres terão que sofrer em uma sociedade que não tem interesse em mudar?

Quando uma mulher é desrespeitada publicamente e sua resposta à ofensa é tratada como exagero, o problema não está em sua reação, mas na estrutura que perpetua esse tipo de comportamento. Foi exatamente isso que aconteceu com a repórter Nathália Freitas, da TV Globo/Rádio CBN, que deixou uma coletiva de imprensa do Atlético-GO após um comentário machista do presidente do clube, Adson Batista. O episódio escancarou o machismo que permeia o futebol brasileiro e gerou uma onda de solidariedade à jornalista, mas também revelou a persistência de discursos que tentam minimizar e naturalizar esse tipo de atitude.

A coletiva de imprensa transcorria normalmente até que Nathália questionou o dirigente sobre uma possível transferência do jogador Shaylon, alvo de críticas da torcida. “Recentemente, você disse que recebeu uma proposta pelo Shaylon, envolvendo dois jogadores e mais 500 mil dólares. Existe alguma possibilidade do Shaylon, que está sendo muito cobrado, sair?”, perguntou a repórter.

No entanto, em vez de responder diretamente, Adson desviou do assunto e decidiu questionar a jornalista: “Não, não vamos falar só do Shaylon. Nathália, eu te respeito e vejo que você acompanha futebol e conhece futebol. Alguém salvou nesse time aqui hoje?”. Quando ela respondeu que o jogador Alê se destacou, o dirigente retrucou: “Não. Ele [Alê] errou para caramba, teve uns chutes, mas pode render muito mais, pode ser cobrado mais. Acho que você achou ele bonitinho, só isso”.

O comentário machista transformou um questionamento profissional em uma insinuação ofensiva, reduzindo a opinião de Nathália a uma suposta atração física pelo jogador. Diante da situação, Nathália não se calou. “Não. Eu não vou aceitar porque eu sou profissional e eu acho que você fez essa brincadeira porque eu sou mulher e isso acaba afetando o meu profissionalismo”, rebateu.

Adson tentou minimizar a situação, alegando que a relação de proximidade com a jornalista motivou seu comentário. No entanto, Nathália manteve sua posição: “Mas para mim é ruim, como mulher”.

A tensão aumentou quando o presidente do clube sugeriu que a repórter não fizesse “barraco” ou se vitimizasse. Diante do tom desrespeitoso e da falta de um pedido de desculpas imediato, Nathália optou por se retirar da coletiva. O gesto repercutiu rapidamente nas redes sociais, provocando debates sobre o machismo no futebol e no jornalismo esportivo.

A decisão de Nathália gerou uma avalanche de apoio de torcedores, colegas de profissão e figuras da comunicação. Em suas redes sociais, ela agradeceu as mensagens de solidariedade: “Oi, galera! Passando para agradecer o carinho e as milhares de mensagens de apoio que recebi. Não consigo agradecer todo mundo individualmente neste momento e nem falar sobre o que aconteceu agora. Assim que for possível, farei. Obrigada!”.

As desculpas e mais falas

Diante da repercussão negativa, Adson Batista divulgou uma nota pedindo desculpas. “Nathália, gostaria de expressar minhas desculpas pelo comentário feito durante a entrevista de hoje. Em nenhum momento minha intenção foi ofender ou desrespeitar você, que considero uma profissional de muito bom nível”, afirmou.

Contudo, as palavras do dirigente entraram em contradição com sua postura posterior. Neste sábado (1º), ele voltou a falar sobre o caso, mas em tom de deboche: Eu fui execrado essa semana porque hoje matar uma mulher, bater em uma mulher, é a mesma coisa que fazer uma brincadeira sem maldade. (…) Eu achei tão injusto que eu fui esculhambado por pessoas que parecem pulheiro de galinha e a sociedade brasileira é assim, eles jogam caráter, jogam a reputação no lixo. Então estou aqui com a minha filha, minha mãe e agora lá em casa está uma brincadeira, toda coisa que eu falo em casa, e vem ‘o Alê é bonitinho’. Então vamos parar de ‘mimimi’, de frescura, e quando um homem agredir uma mulher, quando um homem passar dos seus limites, não respeitar uma mulher, ele tem que pagar por isso”.

Depois, ele tenta justificar seu comportamento citando a presença de mulheres em sua vida – mãe, filha, esposa – como se isso fosse um salvo-conduto para suas ações. Mas ser machista não se enquadra em “não respeitar uma mulher”? E não é isso que precisa pagar por?

Uma brincadeira só é brincadeira quando todos riem. Nathália Freitas não riu. Ela estava em um dia normal de trabalho, cercada por colegas homens, e teve seu profissionalismo e conhecimento questionados simplesmente por ser mulher. Será que Adson faria o mesmo comentário para um repórter homem? É de se duvidar. Afinal, quantas vezes um jornalista do sexo masculino já foi questionado sobre sua análise técnica apenas porque achou um jogador “bonitinho”?

Adson diz que têm mulheres em sua vida, como se isso fosse suficiente para limpá-lo de qualquer acusação de machismo. Mas, veja bem, ter uma mãe, uma filha ou uma esposa nunca foi atestado de respeito às mulheres. Respeito se prova na prática, no dia a dia, na forma como se enxerga e trata todas as mulheres, não apenas aquelas do círculo íntimo. E se ainda é difícil entender isso, basta se perguntar: se Nathália fosse sua filha, sua mãe ou sua irmã, você acharia aceitável vê-la sendo diminuída dessa forma? Se a resposta for não, então é hora de parar de chamar exigência por respeito de “mimimi” e começar a entender que, sim, ser machista é também não respeitar uma mulher.

E falando sobre o “mimimi”, um termo tão caro a quem não quer encarar a realidade. Para muitos, o “mimimi” é uma forma de deslegitimar a dor e a luta das mulheres. É uma maneira de dizer: “Eu não entendo o problema, e não vou me esforçar para entender, porque é mais cômodo continuar como está”. É a desculpa perfeita para quem prefere manter os privilégios de uma sociedade patriarcal, onde homens cis podem rir, debochar e oprimir sem consequências.

Mas vamos combinar uma coisa: o “mimimi” não existe. O que existe é a raiva legítima de quem está cansado de ser desrespeitado, subjugado e violentado. Quando uma mulher como Nathália Freitas se posiciona, ela não está fazendo “frescura”. Ela está lutando por respeito, por dignidade, por igualdade. E essa luta não é só dela – é de todas.

O caso de Nathália Freitas não é isolado. Ele reflete uma realidade na qual mulheres são constantemente subestimadas, desrespeitadas e assediadas em seus ambientes profissionais. O jornalismo esportivo, em particular, é um campo onde o machismo se manifesta de forma explícita. Mulheres que atuam nessa área frequentemente têm sua competência questionada e são reduzidas a estereótipos de gênero.

Mas o que esse episódio também revela é a força e a resiliência das mulheres. Nathália não se calou. Ela se posicionou, mesmo sabendo que enfrentaria críticas e ataques. 

O silêncio cómplice e a necessidade de mudança

Um outro aspecto do episódio foi a ausência de reação imediata dos demais jornalistas presentes na coletiva. O silêncio de muitos profissionais demonstra como o machismo é, muitas vezes, naturalizado. Quando as mulheres são desrespeitadas, a responsabilidade de se manifestar não deve recair apenas sobre elas. A luta por respeito e igualdade deve ser coletiva. Já deveria ser algo básico que quem diz entender, também reconheça seus privilégios e usem suas vozes para combater o machismo em todos os espaços. Como Nathália demonstrou, o silêncio diante de uma agressão é conivência.

Para os homens que se dizem aliados: o respeito precisa ser praticado em todos os espaços, especialmente naqueles onde o machismo se manifesta de forma mais explícita. Não é se calando diante de uma piada machista, de um comentário desrespeitoso, de uma atitude opressora, que vai estar demonstrando algum apoio. Apoie publicamente as mulheres que têm a coragem de se posicionar, porque, muitas vezes, elas não têm escolha a não ser lutar.

Enquanto o futebol continuar sendo um ambiente hostil para as mulheres, casos como o de Nathália Freitas continuarão se repetindo. A luta contra o machismo não pode ser um tema passageiro, debatido apenas quando surge um escândalo. É preciso que clubes, dirigentes, torcedores e profissionais da imprensa esportiva – a sociedade como um todo – adotem um compromisso real com a igualdade de gênero.

A pergunta que fica é: até quando mulheres terão que sofrer como exemplo em uma sociedade que não tem interesse em mudar? A resposta está nas ações de cada um de nós. É hora de parar de normalizar o machismo e começar a construir um mundo onde o respeito e a igualdade não sejam exceções, mas a regra.

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