‘Me boto no lugar deles’, o que leva brasileiros à guerra da Ucrânia

LORENA BARROS
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Matheus Jardes, natural de Soledade (RS), desembarcou na Ucrânia um dia antes do Natal de 2024. Ao assinar o contrato para lutar a guerra pelo país estrangeiro, ele deixou a esposa e uma filha de seis meses no Brasil. A reportagem, ele explicou que a cura da menina de um câncer foi o que fez ele cruzar o mundo por “crianças que sofrem”.

A reportagem ouviu dois brasileiros que se alistaram ao Exército ucraniano no segundo semestre de 2024, quase três anos após o início da guerra. Seguindo o contrato de soldado, eles precisam lutar por pelo menos seis meses, ou serão considerados desertores.

Ambos alegaram que viajaram porque sabem de uma realidade que “a mídia não mostra”. Informados por colegas que já tinham se alistado e majoritariamente pelas redes sociais, eles se consideraram versados sobre o conflito e são taxativos ao falar que a Rússia comete chacinas.

Os soldados também alegaram que o dinheiro recebido para lutar por um país estrangeiro não vale a pena e não deve ser o motivador de quem pensa em se alistar. Oficialmente, eles recebem 20 mil grívnias (equivalente a R$ 2,8 mil) por mês.

O valor para lutar pode aumentar se eles receberem um bônus de 100 mil grivnas (equivalente a R$ 14 mil) pago pela Otan. Este dinheiro, porém, não é garantido. Os dois explicaram para reportagem que a “admiração pelo mundo militar”, o “patriotismo” e o “desejo de fazer um mundo melhor” foram impulsionadores para o alistamento.

Reservados sobre a vida privada nas redes sociais, eles costumam publicar imagens nas trincheiras, segurando fuzis e relatando as dificuldades de estar no campo de batalha. Conheça, abaixo, a história e as motivações de cada um deles.

“BRASIL TEM REALIDADE DE PAZ”

Jardes pretende cumprir os seis meses mínimos de contrato e voltar ao Brasil para o aniversário de um ano da filha dele. A menina nasceu prematura e teve um câncer descoberto ainda nas primeiras semanas de vida. Segundo ele, esse foi o maior motivador da viagem até a Ucrânia.

“Eu já estava acompanhando a guerra e já tinha sido militar. Estudei muito a situação das crianças, como elas sofrem, como perdem as casas, os pais, como estão em abrigos. Isso é muito triste. Lembro como se fosse hoje, estava olhando pra minha filha e falei: ‘Tenho que fazer alguma coisa. Nem que seja um pedacinho do meu tijolinho ali, eu vou tentar botar'”, disse Matheus Jardes, brasileiro que luta pela Ucrânia, à reportagem.

Família ficou reticente, mas aceitou viagem após explicações sobre motivação e vocação militar. Segundo Matheus, a esposa dele “aceitou a missão” imposta por ele mesmo por saber que o marido já foi militar e que o alistamento seria baseado em ajudar os outros, e não em dinheiro.

Por medo de represálias e perseguição russa, Matheus preserva os dados da família nas redes sociais. Ele afirma que as críticas muitas vezes recebidas vêm de quem não tem coragem de fazer a mudança e diz que querer fazer a diferença no mundo nunca o prejudicou.

“No Brasil a gente tem a realidade de paz. A gente não sabe o que é uma guerra, entendeu? Ninguém sabe. Até bater na nossa porta”, disse Matheus Jardes, brasileiro que luta pela Ucrânia, para reportagem.

“AQUI NÃO É BRINCADEIRA”

Natural de Londrina (PR), Ezequiel Rocha também serviu ao Exército brasileiro e se juntou às forças armadas da Ucrânia nos últimos meses de 2024. à reportagem, ele contou que não enfrentou burocracias para se alistar e que recebeu os materiais três dias após chegar ao país, entrando na rotina de treinos físicos com outros soldados.

Ezequiel não fala ucraniano, mas, assim como Matheus, trabalha em um batalhão com compatriotas brasileiros e outros latinos. Eles formam a Legião Estrangeira em Defesa da Ucrânia, que, segundo o militar, tem membros da Colômbia, México, Argentina e até mesmo alguns franceses.

Dinheiro para combater não vale a pena. Ezequiel desencoraja qualquer pessoa que pensa em cruzar o mundo para se alistar pensando na recompensa financeira e pontua que é necessário ter um “propósito” para fazer a viagem. O dele, assim como o do colega gaúcho, é “ajudar quem está sofrendo”. “Eles são humanos. Vim aqui porque se ninguém ajudar, pelo menos eu fiz a minha parte. Eu posso não mudar o mundo, mas a minha parte eu fiz”, afirmou.

Situação “é muito pior” do que o Brasil sabe, diz soldado. Entre os relatos de guerra que Ezequiel afirma que a mídia não mostra, estão o estupro de mulheres ucranianas e a vulnerabilidade de crianças, que, segundo ele, também não escapam da violência perpetuada em vilas invadidas.

“Eu tenho um propósito que eu quero ajudar a Ucrânia e eu quero ajudar a Ucrânia na parte do combate.

O meu sonho sempre foi estar nas Forças Armadas. Agora, se você pensa em vir para fazer um pé de meia, esquece. Não venha. Aqui não é brincadeira”, diz Ezequiel Rocha, brasileiro que luta pela Ucrânia, à reportagem.

Medo da recepção ao voltar para o Brasil. Ezequiel conta que não sabe se precisará pedir asilo em um país estrangeiro após acabar seu contrato como militar. Segundo ele, colegas de front encararam a fuga de um soldado israelense de férias no país após abertura de investigação contra ele como um possível prelúdio sobre o que pode acontecer com os brasileiros que assinaram contrato para defender a Ucrânia.

“Meu maior medo é não conseguir voltar para casa. Não por estar ferido, ou por tombar aqui. Meu medo é de voltar e quando pisar no solo brasileiro a Polícia Federal me pegar e simplesmente me extraditar pra Rússia pra mim ser condenado por crime de guerra. Estou dentro do território ucraniano. Não invadi a Rússia, não estou em território russo”, diz Ezequiel Rocha, brasileiro que luta pela Ucrânia, à reportagem.

“Verde oliva corre nas veias”. O soldado pediu que uma mensagem sobre o patriotismo dele fosse deixada na íntegra ao dar a entrevista para reportagem. “Meu amor pela pátria brasileira sempre estará junto comigo. Depois de Deus vem a minha esposa e depois da minha esposa vem a pátria brasileira”, afirmou.

O QUE LEVA OS BRASILEIROS À GUERRA, DO PONTO DE VISTA SOCIOLÓGICO

Para o professor e mestrando em filosofia Salviano Feitoza, uma série de fatores sociais influencia os brasileiros a irem até a guerra. Embora válida, a justificativa de “se colocar no lugar do outro” costuma ser pincelada por outros fatores, que vão dos algoritmos das redes sociais a um senso de realização pessoal daqueles homens e mulheres.

Ideologia militarista transforma alguns alistados em agentes “pouco reflexivos” de ações sem ligação direta com a vida deles. O professor ressaltou que os brasileiros que embarcam para a Ucrânia costumam ter forte vínculo com as regras militares. Sob essas regras, muitos são orientados a seguir ordens e a ter uma “orientação para a guerra e para o inimigo”. Outros também são instruídos de que a vida deles só terá valor se for usada em prol da nação.

A ideia do “inimigo comunista” ainda vive 25 anos após a queda do muro de Berlim. Feitoza aponta a crença de que a Rússia representa o mal, uma ideia propagada pelos Estados Unidos desde o período da Guerra Fria, como outro fator que orienta a conduta dos soldados brasileiros. Essa crença “anticomunista” também foi propagada no seio do Exército brasileiro, inclusive durante a ditadura militar.

Algoritmos das redes sociais também podem contribuir para a tomada de decisão de se unir à guerra.

Como o que aparece para os usuários das redes é diretamente ligado aos gostos deles, esses soldados e “potenciais soldados” têm mais facilidade de serem bombardeados por informações enviesadas sobre os conflitos. O professor classifica a união desses fatores como a “engenharia do caos”.

Satisfação pessoal vira guia para as ações em prol do coletivo. Para Salviano, até mesmo o patriarcado influencia na escolha deliberada desses soldados de deixarem as suas famílias para salvar desconhecidos do outro lado do mundo.

Em uma perspectiva mais individual, talvez emocional, a gente teria essa busca por um sentido da própria vida, essa jornada heroica de lutar em nome de um bem maior. Esse bem maior, no caso, é a proteção da vida de outras crianças, a proteção da vida de mulheres, a proteção dos incapazes de se defender.
Salviano Feitoza, professor de filosofia, à reportagem.

O BRASIL E A GUERRA DA UCRÂNIA

O número oficial de estrangeiros e brasileiros lutando pela Ucrânia é incerto. Segundo um dado divulgado em 2024 pelo jornal americano Washington Post, mais de 20 mil estrangeiros de 50 nacionalidades diferentes estariam no país. A reportagem buscou o Itamaraty para saber se o órgão tem esse dado, mas não recebeu retorno sobre o assunto até o momento.

Número de brasileiros mortos na guerra é de 16, diz ONG. O levantamento do Memorial Internacional de Voluntários da Ucrânia foi atualizado em 15 de janeiro, quando a morte de Gabriel Lopacinsk foi confirmada.

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