A palavra se faz natureza

Ninguém é totalmente inocente. Nem Cristian, ou Eva, sequer Irene. Tentar encontrar culpas em Líris e na criança seria exagerar na busca; o mesmo se pode dizer das abelhas, das cobras, do cervo, do cardeal, de Luna e de todos os troncos decepados e das criaturas maltratadas.

Todavia, os arrependimentos, nem sempre claramente consentidos ou necessários, desanuviam os passos seguintes. Assim, de ombros menos afivelados pelas cargas dos desencontros, toma corpo o convite que brota da cratera em frente. Impossível ignorar a convocação orgânica. Se os mares se valem das sereias, os desertos, das miragens, o abismo simplesmente atrai.

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Luna puxa a frente. Inútil tentar contê-la. A cachorra, em sua sabedoria intuitiva, a todos mobiliza. O cervo compreende que lhe cabe iniciativa; acostumado às paragens nativas, emparelha o percurso ao lado de Luna. Ao passo, um som magnetiza. “Estás ouvindo?”, sussurra Eva ao ouvido de Irene. “Parece um chamado, feito ímã”, responde a mãe de Líris. “Olhem ali”, alerta Líris. Logo adiante, o vulto de uma pessoa, junto a um pinheiro, vai se tornando mais visível. Trata-se de uma senhora que observa atentamente as profundidades e com elas troca sons. Entoa e ecoa. Canta e reverbera.

“Quem é você?” pergunta Cristian. Ela, sem susto algum, segue na melodia. Sinaliza reverência ao som conivente com as entranhas abissais. Aos poucos, a brisa feita melodia se acalma, como a acolher os recém-chegados. A senhora aproveita a calmaria para responder à pergunta de Cristian: “Sou Tanice. Venho da África. Passei pelas ilhas do Cabo Verde. Estou aqui faz algum tempo. Me encantei com esta cratera. Há tempos, procuro a força da terra em seu estado mais puro e verdadeiro.”

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“Mas como chegaste até aqui? Eu vim seguindo o pombo. E você?”, se inquieta a criança. “Não sei se vais acreditar. Mas, eu saí do Saara com o vento que leva suas areias ao Cabo Verde. Dali, segui os golfinhos que me ensinaram o caminho das águas. Depois caminhei. Uma força me chamava. Eu simplesmente fui em frente. E agora estou aprendendo a linguagem da natureza, canto com ela, falo com ela, sinto como ela.”

O ar move-se úmido. Alguns pingos prenunciam chuva. “Sintam as gotas de água. Vejam. Elas não chegam diretamente ao chão. Primeiro pedem licença às folhas, que as recepcionam, acariciam e deixam escorrer. Aos poucos viram um pequeno fluxo que percola pelos galhos e troncos e se infiltra no solo na busca pelas raízes.”

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Tanice sorri para os troncos decepados: “Vocês compreendem isso muito bem”. “E por que cantavas quando chegamos? Acho que minha bonequinha também quer cantar como você. Ensinas?”, pergunta Líris. “Querida e linda menina, também tenho uma bonequinha. Só que ela está desenhada nesta conchinha que juntei no Cabo Verde.” Tanice mostra a pequena concha a Líris. “Veja, bonequinha. Agora já tens uma amiguinha”, encanta-se Líris.

“Se posso ensinar a falar e cantar com a natureza?”, pondera Tanice. “Basta a gente não se achar mais do que a natureza. É preciso se perceber, mas com sinceridade, igual a ela… Ainda estou aprendendo a linguagem das plantas, dos animais, das rochas, do vento, da chuva, das nuvens… Podemos aprender juntas essa nova linguagem. Vamos tentar?” Pouco tarda para que todos se percebam sintonizados com o ambiente natural, despossuído de intervenções egoístas.

Eva comenta: “Chegaste aqui por uma estranha força que te move. Nós também seguimos um córrego que não conhecíamos. Acho que, como você, Tanice, estamos procurando a maior das forças. Mas que força será esta, que nos empurra, e agora nos irmana à beira deste precipício?”.

Às palavras de Eva, Irene emenda: “Será que esta força que nos move tem algo a ver com a lasca de pedra que Eva carrega no bolso de seu vestido?” Líris exulta: “Pode ser que a planta que está marcada na pedra esteja bem pertinho da gente!” “Que planta?”, pergunta Tanice.

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