Protetores buscam salvar as vidas de animais no DF que passaram por maus-tratos

cachorros

Por Henrique Sucena

Melhores amigos do homem, os cachorros nem sempre têm seu direito básico à companhia atendido. Apesar de oferecer eterno companheirismo aos humanos que lhe acolhem, muitos passam seus dias vagando pelas ruas à procura de sua próxima refeição. Era o caso de Morfeu, que após ser encontrado com lesões sérias no rosto, aparentando ter sido espancado por um humano, foi resgatado por um abrigo local e viu sua vida ser transformada.

É para corrigir esse tipo de injustiça que Morgana da Costa de Abreu investe quase tudo que tem para cuidar do abrigo SOS Pets de Rua, na divisa com Santo Antônio do Descoberto. O cãozinho chegou aos cuidados de Morgana com os olhos severamente machucados e perfurações em seu corpo. Ele foi acolhido pela protetora, mas ainda não conseguiu retomar completamente sua confiança. Ela explica que Morfeu ainda é bem traumatizado e se assusta com movimentos bruscos, com o medo de que os protetores irão agredi-lo assim como os criminosos que o atacaram no passado.

O abrigo funciona desde 2017 e atende animais que passaram por situações de maus-tratos e abandono. Sua administradora comenta que recebem doações para ajudar no trabalho, mas que elas correspondem apenas a um terço do gasto mensal, com o resto tendo que vir de seus próprios bolsos. Para ajudar com uma situação tão difícil, também são feitas hospedagens de bichos de estimação, gerando assim uma renda extra.

Com tantos animais necessitados aos seus cuidados, Morgana precisa se esforçar ao máximo para reconquistar a confiança dos cães que foram ensinados a desconfiar dos humanos. Ela explica que para isso, é importante tratá-los com o maior amor e carinho possível, lhes dando toda a atenção que requisitarem e respeitando seus limites para que eles superem a barreira que a violência impôs.

A Confederação Brasileira de Proteção Animal (CBPA) afirma que, hoje, mais de 1,5 milhão de animais caminham pelas ruas do Distrito Federal sem um lar para protegê-lo ao final do dia. No álbum Os Saltimbancos, composto por Chico Buarque para a peça de mesmo nome, é retratada a história de quatro animais que, assim como muitos na vida real, passam pelo sofrimento do abandono e dos maus-tratos. Pela visão de um cão, uma gata, uma galinha e um jumento, o artista retrata as dificuldades vividas por esses seres indefesos quando a humanidade falha em seu papel de protegê-los. Pela capital federal, abrigos e protetores individuais tentam reverter essa situação, dando aos animais o acolhimento que merecem.

Os Saltimbancos

“Nascemos livres”

O Abrigo Flora e Fauna trabalha desde 2005 no Núcleo Rural Ponte Alta Baixo, no Gama. Um dos organizadores é Wellington Fabiano Soares, vice-presidente da entidade, que se mantém totalmente por doações, que variam dependendo do mês, e do trabalho voluntário de seus cinco funcionários. São mais de 1000 animais que residem no recinto atualmente, dos quais mais de 200 são gatos e 800 são cachorros.

Wellington diz que, após o Flora e Fauna ajudar na recuperação dos animais, eles são levados para as feiras de adoção, que às vezes recebem reforços de voluntários extra. Essa dificuldade financeira é refletida no déficit entre o dinheiro esperado e o recebido pelo abrigo. O vice-presidente diz que o valor arrecadado ideal mensalmente seria em torno dos R$100 mil, mas que o grupo costuma receber cerca de R$10 mil a cada trinta dias.

Fundadora do abrigo, Orcileni Arruda de Carvalho cuida dos animais residentes do Flora e Fauna há quase 20 anos. Ela lamenta a falta de paciência que algumas pessoas têm com animais, especialmente filhotes, o que acaba gerando muitos casos de abandono. Ela explica que esse fator é bem comum entre os felinos.

“De três em três horas, eu faço mamadeiras para os filhotes de gato. As pessoas, às vezes, tem essa ideia de que gato é independente e pode se cuidar sozinho. Aqui a gente está sempre nessa luta. A gente cuida desses filhotinhos e encaminha eles para adoção. As pessoas não pensam nisso, só querem tirar o animal da vista dela”, lamenta Orcileni.

Abrigo Flora e Fauna enfrenta lotação máxima para cuidar de seus animais; Foto por: Henrique Sucena

Fabíola Araújo é responsável pelo @papodegatasedogs, comunidade de protetores que oferece abrigo temporário em suas casas enquanto animais abandonados não vão para as feiras de adoção. Ela explica que realmente enxerga um preconceito maior contra os gatos por demonstrarem menos apego aos humanos. A protetora acredita que algumas pessoas têm essa visão negativa dos felinos e por isso os maltratam.

“Já peguei inúmeros casos de gatos abandonados, em caixas e em sacolas. Pessoas que maltratam animais com certeza não têm uma boa índole, um bom caráter e vão pagar, nem que seja pela justiça divina. O abandono é um maltrato, é uma ação muito covarde do ser humano. Fico chocada com a capacidade do ser humano de maltratar os animais, de abandonar, envenenar, atropelar e não socorrer, é uma judiação”, lamenta Fabíola.

Ela explica que uma ação essencial a se tomar com os felinos, especialmente as fêmeas, é castrá-los e certificar-se de que as casas dos adotantes possuam poucas rotas de fuga. Por terem um espírito aventureiro, esses animais muitas vezes escapam de seus lares e, caso estejam no cio, podem acabar reproduzindo e aumentando o número de animais nos abrigos.

Lealdade Eterna

Um dos casos que mais chamou a atenção de Wellington Soares, do Fauna e Flora, em seu tempo trabalhando no abrigo Fauna e Flora foi o do cãozinho Bono. Em março de 2021, Wellington e Orcileni o resgataram de um bueiro no Setor Oeste do Gama, apresentando sérios sinais de maus tratos. Com ferimentos graves na orelha, que estava infestada com larvas, ele foi um dos casos mais sérios já socorridos pelo grupo.

“O Bono já estava há muito tempo sendo comido por larvas. Infelizmente as pessoas ainda vêem os animais necessitados e ficam apenas esperando a ajuda chegar. Se alguém já o tivesse levado ao veterinário e depois pedido ajuda financeira, ele poderia se recuperar totalmente. Agora vamos aguardar para ver o que pode ser feito por ele”, informou o protetor na época.

Os gastos com veterinários para os animais resgatados em condições mais críticas são um dos grandes impactos à saúde financeira do abrigo. Wellington diz que os valores dependem de caso para caso. No caso de Bono, que precisou de vacinas, remédios. internações para acompanhamento veterinário e a amputação de sua orelha esquerda, a situação foi mais complicada, fazendo com que o Flora e Fauna precisasse reforçar o pedido de doações em suas redes sociais para que o cãozinho pudesse sobreviver.

Wellington ajuda a cuidar dos mais de mil animais no abrigo, incluindo Bono, que recebe um abraço na imagem; Foto por: Henrique Sucena

Três anos e meio depois, Bono hoje vive no abrigo, onde se tornou um dos grandes companheiros de Wellington. Apesar de ainda não ter achado um lar definitivo, ele hoje agradece pelo carinho de seus socorristas e demonstra gratidão pela vida que lhe foi dada, de acordo com seu cuidador.

“Esses animais, muitas vezes, são abandonados nas ruas, à mercê da sua própria sorte. Quando o animal é abandonado na rua, ele está morrendo aos poucos. É um sofrimento eterno, porque ele vai passar frio, ele vai passar fome, ele vai se machucar, ele vai adoecer até vir a óbito, ou morrer atropelado, ou outros casos que chegam a acontecer”, lamenta Wellington.

Por isso, ele explica que apesar do abrigo estar com lotação máxima, ainda são acolhidos casos mais extremos de violência vindo das ruas. A alma caridosa dos voluntários reflete a de parte da sociedade que se solidariza com o sofrimento que esses animais passam. O instituto tenta fazer com que as pessoas entendam a importância de não só adotar animais, mas de tratá-los da maneira correta: como membros da família. Dessa maneira, Wellington acredita que se possa diminuir a incidência dos crimes de abandono e maus-tratos contra os animais.

Como bestas

Nem sempre a violência contra outros seres vivos é tratada com a mesma severidade da contra humanos. Apesar de ser crime, os maus-tratos contra os animais e o abandono dos mesmos ocorre com certa regularidade. A Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) informa que atendeu 287 casos do tipo entre janeiro de 2023 e maio de 2024, com as maiores incidências sendo em Ceilândia e no Plano Piloto, com 39 e 33 casos, respectivamente.

Especialista em direitos animais, a advogada Cinthia Belino explica que em 2022, a legislação brasileira sobre maus-tratos a animais foi dividida entre cães e gatos e outros animais. Para caninos e felinos, a pena varia de dois a cinco anos, dependendo da gravidade do crime, e não pode ser resolvida com um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO). No entanto, para outros animais, como silvestres, exóticos e domésticos (cavalos, vacas, coelhos, etc.), a pena permanece entre seis meses e um ano, o que aumenta a impunidade e os maus-tratos.

Animais vítimas de maus-tratos e com sequelas costumam depender de abrigos para sua sobrevivência; Foto por: Henrique Sucena

Em relação ao abandono, ela critica o fato de ser subjetivo. Apesar de poder ser considerado maus-tratos, a caracterização do crime depende da intenção do autor, algo que Cinthia acredita que é dificilmente provável, o que leva à impunibilidade.

“A primeira coisa que eu acho que falta na nossa legislação é exatamente essa separação. É deixar muito explícito que existe sim a opção de punir aqueles que também agem por culpa. Então a legislação para a questão dos animais, principalmente no que trata a relação a crime a outros animais, precisa melhorar e muito. E eu acho que precisava especificar o que é dolo, o que é culpa, as questões com os cuidados e trabalhar também a questão educativa. Porque se a lei não punir de forma a temer possíveis crimes, ela não cumpre o seu papel de educação”, sustenta a advogada.

Cinthia defende que essa conscientização seja feita desde a infância e lastima que questões relacionadas aos direitos animais sejam deixadas de lado pela sociedade. Ela lembra que além dos cães e gatos, diversas outras espécies passam por abusos, muitas vezes sem serem vistos pelos humanos. A advogada alerta para a invisibilidade dessa causa e desaprova a pena atual de seis meses a um ano em casos de abuso contra esses bichos. Ela diz acreditar que isso aumente a impunibilidade e a falta de educação no tratamento aos animais.

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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