Primeira biografia de Dalton Trevisan mostrará ‘intimidade da obra’ do autor

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

No ano do centenário de seu nascimento, o escritor Dalton Trevisan -morto em dezembro passado, aos 99 anos- ganhará sua primeira biografia.

A tarefa cabe ao tradutor e jornalista Christian Schwartz. Curitibano como o contista, ele trabalha há quase dois anos diretamente no projeto e teve acesso franqueado à correspondência completa e a parte dos diários mantidos por décadas pelo autor, além de ter conseguido depoimentos do próprio.

Schwartz está na fase final da escrita da obra, programada para ser lançada no segundo semestre pela editora Todavia -pouco depois, portanto, da data redonda do centenário de Trevisan, nascido em 14 de junho.

Especialista em literatura inglesa, o agora biógrafo é mestre em estudos literários e doutor em história social. Traduziu autores como Scott Fitzgerald, Mary Shelley, William Burroughs, Nathaniel Hawthorne, Philip Roth, Jonathan Coe e Nick Hornby.

Schwartz conta que sempre se interessou muito pelo seu biografado, até porque “Dalton Trevisan entra por osmose num curitibano que escreve e lê”. Em 2023, procurou a agente do escritor, Fabiana Faversani, para sondar a possibilidade de consultar o acervo pessoal dele.

“Ela começou a responder normalmente às minhas perguntas um pouco ousadas, às minhas demandas, daí a certa altura eu falei: por que que você está aceitando conversar comigo nesses termos, sempre pareceu tudo tão fechado. Não é possível que eu seja o primeiro a pedir acesso às coisas? Ela falou: sim, você é o primeiro. Ninguém nunca tinha me perguntado se podia.”

Schwartz pediu primeiro acesso à correspondência de Trevisan, da qual uma pequena parte era conhecida por estar acessível a pesquisadores na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro -o curitibano foi um notório missivista, e trocou cartas com escritores como Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava e Rubem Braga ao longo da vida. A ideia inicial do pesquisador era reconstituir o processo de criação de Trevisan a partir dos interlocutores literários dele. Ele acabou obtendo acesso à correspondência completa, mais precisamente 2.297 cartas, entre enviadas e recebidas -porque Trevisan datilografava com papel carbono as escritas por ele e guardava as cópias. As 600 cartas trocadas com o jornalista e escritor Otto Lara Resende constituem, segundo o biógrafo, o cerne do diálogo sobre o fazer literário.

O papel carbono revela uma faceta fascinante em se tratando de um personagem notadamente desapegado de sua imagem pública. “Fui percebendo aos poucos que ele se autodocumentou exaustivamente. Não passou um dia sem escrever uma carta e não passou um dia sem escrever no diário dele também. Então resolvi apostar nesse acervo de documentação pessoal para escrever a biografia”, relata Schwartz.

A célebre reclusão de Trevisan, sintetizada no apelido de vampiro de Curitiba –trata-se de um personagem-título de um de seus livros, mas o termo também remete à suposta misantropia do escritor- é contestada pelo biógrafo. O protagonista que emerge da pesquisa de Schwartz é sim avesso a holofotes e arredio à imprensa, mas antes alguém cortês, amigável e sociável.

“É um pouco mito essa ideia de reclusão, porque ele era um cara discreto e esquivo para certo tipo de pessoa. Basicamente para jornalistas e bisbilhoteiros. Ao longo de 95 anos, quando começou a ficar impossibilitado fisicamente de circular pela cidade, não teve um dia na vida em que ele não saiu de casa, encontrou dez, 15, 20 pessoas e falou com elas. Isso não é ser recluso”, diz Schwartz.

Depois do sinal verde à correspondência, Schwartz foi avançando aos poucos. Obteve parte dos diários de Trevisan, espalhado por 31 cadernetas e quase 3.000 laudas datilografadas. “Esse acesso foi um pouco mais seletivo e todo provocado por mim, ela [a agente] não me concedeu aleatoriamente. Eu tinha uma visão geral da história que queria contar a partir da cronologia da obra e de alguns poucos fatos marcantes da vida pública dele, o que até os anos 1950 é bem documentado. Aí fui pedindo para ver o que ele anotou na intimidade sobre esses momentos.”

Essa arqueologia do acervo permitiu ao biógrafo reconstruir passagens importantes da vida de Trevisan, como quando, em 1947, ainda um jovem desconhecido, abordou na cara de pau o ídolo Manuel Bandeira numa feira de rua no Rio.

Até pôr o ponto final no livro, o autor terá acesso integral aos diários. O acervo de Trevisan, que foi doado ao Instituto Moreira Salles (IMS) e ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP (Universidade de São Paulo), está sendo digitalizado e deve integrar exposições pelo centenário do escritor.

Outra preciosidade para a pesquisa foi a biblioteca pessoal do escritor, com 2.373 volumes. “Ele era um leitor-anotador compulsivo. As marginálias dos livros dele são uma maravilha, porque ele sublinhava e anotava tudo. A história de leitor dele é uma história à parte”, conta Schwartz.

A etapa seguinte da aproximação foi entrevistar o biografado, ou ao menos colher depoimentos para o livro. Trevisan tinha 98 anos e já estava sem sair de casa. Seguia lúcido, mas fragilizado fisicamente, contando com o auxílio de amigos e enfermeiros. Schwartz propôs que esse diálogo fosse intermediado pela agente do escritor.

Fabiana Faversani gravou pouco mais de uma hora de depoimentos de Trevisan a partir de perguntas do biógrafo. E o biografado ainda respondeu a questionários por escrito.

Schwartz optou por não entrevistar pessoas do convívio do contista -cuja mulher e duas filhas morreram antes dele, bem como os contemporâneos mais próximos. Argumenta que quis evitar as armadilhas em torno da surrada mística pessoal do dito vampiro e que sua prioridade é a obra de Trevisan. Assim, afirma, o acervo e os depoimentos do escritor dão conta de um trabalho que, por isso mesmo, terá forte componente ensaístico.

“Toda biografia literária a meu ver sempre é um pouco um ensaio também. Porque o escritor não tem a vida, digamos, de um corredor de Fórmula 1 ou de um ator. O Dalton, apesar de não ser recluso da forma como se achava, não tinha uma atuação pública marcante, de participar de movimento, falar em público”, diz o biógrafo.

“O que ele fazia era andar pela cidade, falar com as pessoas, trocar cartas, promover a obra dele. Sempre fez isso muito bem, distribuindo os textos com antecedência, conversando com um monte de gente. E escrever. Ele era um cara realmente obcecado por sentar e escrever todo dia.”

Schwartz brinca com as peculiaridades de sua empreitada. “Talvez o cara menos biografável da história da literatura brasileira seja o Dalton Trevisan. Então esta é a versão possível de um livro impossível.”

E usa duas figuras de linguagem para ilustrar a árdua missão. Diz que buscou mergulhar na “intimidade da obra” de Trevisan. E que, em se tratando de um biografado tão idiossincrático, procurou, numa imagem desbragadamente daltoniana, “espiar as suas muitas décadas de existência, como autor e homem comum, pelo buraco de uma fechadura, à luz de velas”.

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