Falta de estrutura é um desmonte à Luta Antimanicomial

A luta antimanicomial no Brasil tem sido uma conquista fundamental na garantia dos direitos das pessoas com transtornos mentais. A Lei 10.216/2001 representou um marco ao substituir a lógica do isolamento manicomial por um modelo de atenção psicossocial, voltado para o cuidado em liberdade e o respeito à dignidade humana. No entanto, apesar dos avanços institucionais e do crescimento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), a política de saúde mental ainda enfrenta desafios estruturais que dificultam sua plena efetivação, especialmente em estados como Goiás. Na capital, o Pronto Socorro Psiquiátrico Wassily Chuc é a porta de entrada para a Rede de Atenção Psicossocial, o que diz muito sobre a preocupação dos governantes com a saúde mental da população.

O Brasil já testemunhou os horrores dos hospitais psiquiátricos, como documentado no livro Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex. A obra escancara os abusos cometidos no Hospital Colônia de Barbacena, onde milhares de pessoas foram internadas sem necessidade real, submetidas a torturas e negligência. Esse passado sombrio reforça a importância de evitar retrocessos e garantir que o tratamento humanizado seja uma realidade, não apenas um ideal distante.

Nos últimos anos, os números mostram mudanças significativas na oferta de atendimento em saúde mental. Entre 2013 e 2023, o Brasil registrou uma queda de 53,7% na oferta de leitos psiquiátricos no Sistema Único de Saúde (SUS), reduzindo-se de 17,3 para 8 leitos por 100 mil habitantes. Em contrapartida, houve um aumento de 42,7% na quantidade de CAPS, que passaram de 2.224 para 3.343 unidades. Paralelamente, os atendimentos psicossociais dobraram, chegando a 26,4 milhões em 2023. Esses dados indicam uma mudança de paradigma, mas também expõem lacunas preocupantes.

A substituição dos leitos hospitalares pelos CAPS é uma estratégia acertada, pois evita a institucionalização desnecessária. No entanto, a estrutura ainda é insuficiente para atender à demanda. Em Goiás, por exemplo, há poucos CAPS para uma população crescente, o que sobrecarrega os serviços e dificulta o acompanhamento contínuo dos pacientes. Além disso, há um crescimento expressivo das chamadas comunidades terapêuticas, que muitas vezes operam sem a fiscalização adequada e seguem um modelo que se distancia das diretrizes da saúde pública, reforçando práticas excludentes.

Outro grande desafio é a falta de equipes especializadas nas unidades básicas de saúde e nos prontos-socorros. Um problema recorrente é a contenção de pessoas em surto. Se a internação compulsória não é a primeira opção, como garantir a segurança dessas pessoas e da comunidade? Profissionais de saúde frequentemente se veem sem alternativas, já que a rede de acolhimento e as políticas públicas ainda são frágeis. A abertura de enfermarias especializadas em hospitais gerais poderia ser uma solução, permitindo que pacientes em crises agudas recebam cuidados adequados sem precisar recorrer a internações de longo prazo.

Além disso, a regulação dos planos de saúde tem contribuído para a desigualdade no acesso ao tratamento psiquiátrico. A restrição imposta pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que prevê coparticipação de 50% para internações superiores a 30 dias, desestimula a continuidade do tratamento adequado. Enquanto isso, cresce o número de leitos psiquiátricos privados, demonstrando que o modelo manicomial persiste no setor privado, ainda visto por muitos como a única solução viável.

A luta antimanicomial não pode ser reduzida à simples extinção dos hospitais psiquiátricos. É preciso garantir que a rede de atenção psicossocial tenha estrutura suficiente para acolher e tratar os pacientes de forma digna. Isso envolve ampliar os CAPS, fortalecer o atendimento na atenção primária e criar equipes multidisciplinares capazes de intervir em momentos de crise. Sem esse fortalecimento, corremos o risco de perpetuar novas formas de exclusão, ainda que sob uma roupagem diferente.

A transformação do modelo de saúde mental no Brasil ainda é um caminho em construção. Para que os avanços conquistados não sejam perdidos, é fundamental que haja investimento público contínuo, fiscalização rigorosa e um compromisso efetivo com o cuidado em liberdade. Somente assim será possível garantir que o passado de abusos e negligências retratado em Holocausto Brasileiro não se repita sob novas formas de segregação.

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