Nossa luta contra violência na ditadura não acabou, diz Vera Paiva, retratada em ‘Ainda Estou Aqui’

vera paiva

GÉSSICA BRANDINO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Passados 54 anos do desaparecimento de Rubens Paiva, a primogênita Vera Paiva, 72, afirma que a família continua a luta travada pela mãe, Eunice Paiva, pelos mortos e desaparecidos durante a ditadura militar.

A história da família é retratada no filme indicado ao Oscar “Ainda Estou Aqui”, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva.

Professora titular de psicologia na USP, Vera trabalha desde 2014 na Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, da qual Eunice fez parte, em 1996.

À Folha de S.Paulo Vera falou sobre a pressão junto ao governo Lula (PT) para retomar os trabalhos do grupo, extinto pela gestão de Jair Bolsonaro (PL). Ela reforça que a família segue na busca pelo corpo de Rubens Paiva e que o sucesso da produção de Walter Salles foi inesperado e reconfortante.

“Que pelo menos essa história sirva para iluminar o que está acontecendo no mundo”, diz.

MEMÓRIA

Eunice teve atuação na à época Comissão de Desaparecidos Políticos, instituída pelo governo de Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990 e extinta faltando 15 dias do término de governo de Bolsonaro. Vera critica a demora de Lula para reinstalar o colegiado, algo que só aconteceu após a manifestação das famílias de vítimas.

“A Comissão de Anistia foi logo reinstalada pelo governo Lula. A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos levou 18 meses para ser reinstalada pelo Lula, só depois de muita pressão, por quê? Porque há movimentos políticos de direita.”

Vera afirma que a mãe, em seu trabalho na comissão, estava decidida a apurar a perseguição contra milhares de indígenas pela ditadura, o que não estava sendo considerado pelo grupo. Além disso, lembra que a mãe relatava sofrimento pelo trabalho.

“Ela sofria muito com os relatos detalhados da tortura e isso ela nos disse várias vezes. Ficava horrorizada porque ela ia viver aquilo e ficar imaginando o que teria acontecido com o meu pai”, diz.

Para Vera, a tarefa da comissão de verificar quem foi assassinado e torturado, encontrar os restos mortais e dar um enterro digno, é das tarefas mais duras. “Por isso ela não aguentou.”

Reportagem do jornal O Globo, em março de 1996, mostrava que Eunice citou estresse por conta de recordações dolorosas e pediu afastamento do grupo.
Monitoramento pela ditadura

A saída da família Paiva do Rio de Janeiro veio após a promessa do então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, feita ao pai de Rubens Paiva de que ele seria solto depois disso. Vera conta que a família sabia do monitoramento feito pela ditadura.

“A gente pegava o telefone, você ouvia o barulho [de interceptação]. Claro que minha mãe não tinha medo. O que mais que a ditadura podia fazer?”, diz.

Vera conta que a mãe esteve com ela e com as irmãs, Ana Lucia e Eliana, no Dops (Departamento de Ordem Política e Social), por conta da atuação delas no movimento estudantil. Apesar disso, Eunice nunca as impediu.

“Ela só dizia: por favor, não me façam passar de novo por essa situação.”

Documentos que mostram o monitoramento de Eunice pelo regime militar foram publicados em reportagem da Folha neste fim de semana. Os arquivos, que incluem os pareces feitos por Eunice na comissão federal, foram disponibilizados na ferramenta Pinpoint, do Google.

A MORTE DE RUBENS PAIVA

Vera afirma que, embora Eunice tenha recebido em julho de 1971 o relato sobre a morte de Rubens, ela relatou que só assumiu a morte do marido ao receber, em 1996, a certidão de óbito.

“A gente evitava de falar no assunto também, para ela não sofrer mais. Era um pacto de silêncio para que a gente tocasse a vida que a gente tinha pela frente.”

Para Vera, o reconhecimento da morte do pai veio dez anos depois e não quando a família deixou o Rio de Janeiro. “Eu me sentiria cúmplice do assassinato. Como assim se a gente não tem o corpo? Como assim eu estou enterrando meu pai?”, diz.

Sobre o corpo, Vera diz que a família está atenta às notícias sobre restos mortais encontrados na Usina Cambahyba, no Rio de Janeiro. Os fornos do local teriam sido usados pela ditadura para incinerar as vítimas. “Talvez esteja lá, não sabemos. O que importa a gente ir atrás de cada pista. Eu, particularmente, estou.”

‘AINDA ESTOU AQUI’

Vera afirma que tem sido difícil reviver o que aconteceu por conta do sucesso do filme.

“Não é fácil lidar com essas memórias. Conforme eu vou contando, vou me emocionando cada vez. São coisas que a gente pode guardar numa caixinha.”

Apesar disso, ela diz esperar que o filme ajude na conscientização sobre o que são os movimentos neonazistas e fascistas que querem reconstituir ditaduras do mundo, no que critica o governo de Donald Trump, por naturalizar as milhares de mortes na Palestina, no conflito com Israel, e pede por mais tolerância entre posições políticas e religiosas.

“Nenhuma religião é a favor disso [tortura], muito menos a cristã em nome de Cristo, ele que morreu torturado na cruz. Minha mãe fazia questão de falar alto no Alzheimer, quando a gente ia à missa, na hora do Pai-Nosso. Ela rezava com a mão pra cima e no final dizia: meu maridinho também morreu torturado como meu Cristinho.”

A reportagem foi produzida em parceria com o Google. A Folha de S.Paulo coletou documentos que estão agora organizados e disponíveis à consulta na ferramenta Pinpoint. Veja aqui todas as coleções.

Vera Paiva, 72
Filha mais velha de Eunice e Rubens Paiva, desde 2014 é representante da sociedade civil na Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Professora titular do departamento de psicologia social do Instituto de Psicologia da USP. Doutora e mestre em psicologia social, pesquisa no campo da sexualidade e da prevenção do HIV e Aids

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