Desaparecidos no DF: luto, amor e esperança unem famílias; saiba como ajudar

“Quando morre, você sabe que encerrou aquele ciclo. Você vai lá, você chora a dor de um filho. Você vai ali e chora. Mas quando desaparece você não consegue encerrar esse ciclo. No desaparecimento você não tem resposta, é um sentimento de vazio”. A dor é de Magna Vieira Teixeira, de 55 anos, que é mãe do Rodrigo Henrique. Ele desapareceu em 2010, quando tinha 18 anos, na cidade de Santa Maria (DF). 

“Se passaram tantos anos e nenhuma notícia. Porque quando a pessoa morre a gente sabe que morreu, enterrou e acabou. A gente sofre o luto. Mas quando é desaparecimento, ainda mais de uma criança, doi tanto. É uma dor tão grande e diferente que a família carrega”. A dor é de Marielly Neiva, de 38 anos, que é prima de Ranara Lorrane. A menina desapareceu aos 11 anos na cidade do Recanto das Emas. 

“Quando você enterra alguém você sabe onde a pessoa está. Você finaliza um ciclo que é natural da vida. Quando alguém desaparece fica algo incompleto e eu só tenho essa consciência depois de vários tratamentos psicológicos”. A dor é de Kátia Liberato, de 43 anos, filha da Mirian Liberato que desapareceu aos 49 anos na cidade de Sobradinho. 

Magna e Rodrigo. Marielly e Ranara. Kátia e Mirian. E tantas outras histórias de amor interrompidas. São famílias que esperam por qualquer rastro de esperança, por uma pista ou uma ilusão sequer. Vidas marcadas por  dúvidas sobre fatos e sonhos de reencontros. A  certeza para elas, além do amor, é a ausência. Magna, Marielly e Kátia compartilham a mesma dor e o mesmo pensamento: o luto pela morte, pelo menos, é uma certeza. 

Quem tem história de desaparecimento, passa a viver em sobressaltos de interrogações. Não há certeza sobre nada. Nem da morte, nem da vida. Essas pessoas se perguntam todos os dias o que poderia ter acontecido. Aliás, elas compartilham também da esperança de reencontrar os familiares desaparecidos. Já imaginaram um sem-número de cenários em que o amor da vida  poderia estar. E esperaram que o telefone tocasse e trouxesse de volta a vida de antes. Na maioria das cenas sonhadas, eles estão vivos. Afinal, dentro delas, estão sempre vivos.

No vídeo, fotos de pessoas desaparecidas no Distrito Federal divulgadas pela Polícia Civil. Os três retratos destacados são das histórias que você vai conhecer nesta reportagem.

Luto prolongado 

Psicóloga especialista em luto, Milena Câmara explica que perder um familiar para o desaparecimento também é um tipo de luto. É uma perda classificada como ambígua. Segundo a especialista, trata-se de uma ausência que se mantém presente. “Existe a dúvida de até que ponto eu devo continuar em busca. Aquela pessoa não está ali fisicamente, mas emocionalmente ela está. A gente precisa entender que luto não é apenas relacionado à morte”.

A psicóloga explica ainda que o luto pelo desaparecimento tende a se estender porque não há definição da falta. “A gente chama de transtorno de luto prolongado. São sintomas de luto, mas com o agravante de que a pessoa sempre está em estado de alerta de procurar sempre uma informação, uma notícia. A pessoa fica tentando entender o que aconteceu, fica buscando respostas”.  

Apesar disso, a psicóloga Milena Câmara ressalta que não existe um tipo de luto pior que o outro. “A gente nunca compara as dores. Qual é a dor maior? Qual é a dor menor? A gente sofre pelo significado dos nossos vínculos, pelo significado do que foi perdido. O que a gente fala é que a perda do desaparecimento traz desafios maiores de você ter que conviver com essa incerteza”. 

Contagem dolorida

Histórias como as dessas mulheres não são raras no Distrito Federal, a unidade da federação com a maior taxa de pessoas desaparecidas registradas no Brasil a cada 100 mil habitantes. Em 2022, era de 83,6. No ano seguinte, em 2023, essa taxa passou para 92,1. Segundo o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2024, foi identificado que 2.594 pessoas desapareceram no DF em 2023 (com 2131 localizações). No ano anterior, era de 2354 (e 2107 localizações).

Arte: Birô de Criação Ceub

De acordo com relatório da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), de janeiro a agosto de 2024, havia 1.333 pessoas desaparecidas. Desse total, 1.204 foram localizadas, o que representa cerca de 90%. No entanto, nas histórias trazidas nesta reportagem, cada dia é uma dor única. 

Segundo o subsecretário de Integração de Políticas Públicas de Segurança do DF, Jasiel Fernandes, o Distrito Federal é o que mais registra desaparecimentos porque tem um sistema mais rápido de ocorrências. “A gente incentiva que a ocorrência seja registrada mesmo antes das primeiras 24 horas do desaparecimento. Isso pode ser feito em qualquer delegacia ou de forma online e por isso o número de registros do DF é maior”.

Arte: Birô de Criação Ceub

Santa Maria (DF), 2010

Aquele 24 de julho de 2010 era um dia comum para a técnica administrativa Magna e para o marido, José Lino, até a hora do almoço. Eles iam almoçar fora de casa e, como de costume, foram até o quarto de Rodrigo, filho do casal, perguntar se ele queria ir com eles. Também como de costume, o jovem negou. Rodrigo Henrique Lino Teixeira, de 18 anos, era muito tímido e não gostava de sair de casa. A rotina dele era o percurso entre a casa e a escola. Ele morava em Santa Maria, região administrativa de Brasília, e estudava no Gama, cidade ao lado. 

Magna e Rodrigo, poucos dias antes do desaparecimento. 

Naquele dia de 2010, o casal  chegou em casa por volta das 15h e Rodrigo não estava no quarto. Rodrigo não era de festas ou de sair sem revelar o destino. Mas naquele dia ele não estava em casa. A mãe sentiu que alguma coisa estava errada, mas ela esperou pelo filho. Esperou por meia hora, uma hora, duas horas. Esperou a madrugada inteira. Magna começou a se desesperar. O esposo tentou acalmá-la dizendo que o filho poderia estar na casa da namorada ou de algum amigo, que ele iria voltar em breve. Mas Rodrigo não tinha namorada. Nem amigos.

Magna não dormiu naquela noite. Ela queria ir para a delegacia o mais rápido possível. Mas o marido, que trabalhava na polícia na época, alertou  que não ia adiantar porque era muito recente. Mas, ainda assim, Magna foi. Às 7h da manhã do dia seguinte, os pais de Rodrigo estavam na delegacia. Segundo Magna, os policiais não quiseram registrar o desaparecimento porque não acreditavam que Rodrigo poderia ter realmente desaparecido. “Eles falaram que seria cedo pra registrar. Mas eu falei que iria registrar porque eu tinha certeza que teria acontecido alguma coisa”, disse Magna à reportagem do Esquina.   

O sexto sentido da mãe tinha certeza do drama que começaria ali. O registro foi feito. Magna espalhou cartazes. Publicou fotos na internet. Saiu à procura do filho na cidade em que morava e nas regiões próximas. E nada. Nada até hoje, mais de 14 anos anos depois da última vez que Magna viu o filho. “A polícia, infelizmente, só  abriu um inquérito porque meu marido era policial militar na época, e ele pediu para o delegado abrir.  O delegado fez, mas nunca investigou direito”, indigna-se Magna.

O subsecretário de Integração de Políticas Públicas de Segurança do DF, Jasiel Fernandes explica, no entanto, que, na verdade, o ideal é que a família faça o registro de desaparecimento assim que houver uma “ruptura na rotina”.  Apesar disso, o secretário afirma que tal fato não é muito conhecido e, geralmente, confundido. O que acontece é que a polícia espera 24 horas desde o registro da ocorrência para começar a investigação porque existe uma margem de erro que pode estar ligada a, por exemplo, falha na comunicação entre o desaparecido e quem registrou a ocorrência.

“O registro da ocorrência é extremamente importante para que tudo aconteça. Quanto mais rápido nós agirmos, menor a distância que a pessoa vai poder percorrer. A ideia é que nessas primeiras 24 horas a gente tenha rastros mais evidentes de poder localizar essa pessoa”, explica o subsecretário. 

Em maio de 2024, foi criada a campanha “Não espere 24h” para desmistificar a necessidade de esperar 24 horas para registrar o desaparecimento. Depois da divulgação, o número de registros de desaparecimentos no DF aumentou ainda mais. 

Depois do registro, Magna ia quase todos os dias à delegacia. Até que parou de fazer esse percurso porque não sentiu o apoio necessário da polícia. “Eu ia direto na delegacia e falava ‘moço, tem alguma informação?’”. Ouvir ‘não’ virou uma rotina. “Eu até parei de ir lá porque eles nunca tinham nada”. Magna contou que sentiu mais dificuldade quando disse que Rodrigo tinha 18 anos porque os investigadores diziam que ele já teria liberdade para sair e fazer o que quisesse. 

De novo, Magna insistia que algo de errado teria acontecido: “Eu sabia que não era normal. Ele nunca tinha dormido fora de casa. Não tinha namorada, não gostava de festa, não gostava de sair”. 

Tempo estagnado 

Perguntei para Magna quantos anos ela tinha quando Rodrigo desapareceu. Ela ficou em silêncio alguns segundos. Depois respondeu que não sabia mais contar as horas desde o desaparecimento. Disse que se perdeu no tempo desde que o filho sumiu. Magna explicou que a terapeuta dela disse uma vez que ela parou no tempo por uma tentativa inconsciente de voltar à infância de Rodrigo. As lembranças permanentes de quando ele estava em casa todos os dias. “Se você me perguntar quantos anos o Rodrigo tem hoje, eu não vou saber te responder. É algo estranho na minha cabeça”. Ela não consegue mensurar o tempo da ausência. “Para mim, foi ontem”.  

Mesmo sem conseguir contar o tempo – e ir contra o tempo -, Magna identifica que, no início, era muito mais difícil conversar sobre o desaparecimento de Rodrigo. A dor permanece, mas falar é uma necessidade. Dói mais quando surge a pergunta se ela desconfia do que pode ter acontecido com o filho. Ela chora. O silêncio e as palavras aceleradas são de desespero. “Se me perguntar hoje o que eu acho que possa ter acontecido, eu não sei. Eu não sei o que aconteceu”. 

Infância 

Ainda chorando, Magna disse que pede a Deus para sonhar com o rosto, os cabelos e o corpo do filho do jeito que estão hoje. Mas ela só consegue sonhar com Rodrigo criança. Antes mesmo de ele ter 18 anos. “Eu só sonho com ele criança. E mesmo quando eu sonho, eu converso com ele, mas não consigo ver ele, é muito estranho”. Esses sonhos só vieram depois de cerca de três anos do desaparecimento. Magna passou as noites em claro nos primeiros três anos depois que o filho sumiu. Ela conta que na época emagreceu mais de 15 quilos. 

Magna precisou de muito tempo para ressignificar a vida sem o filho. “Eu tive que fazer muita terapia. Só agora que meu (outro) filho casou e me deu dois netinhos que minha vida tá começando a fazer sentido de novo. Agora que eu consigo dar um alívio na minha vida”. Para todos da família, é uma dor que não passa, mas nada como o sentimento dela como mãe. Ela foi quem mais sofreu e sofre até hoje. E vai sentir essa dor até reencontrar Rodrigo. 

Magna é mãe de três meninos. Rodrigo é o filho do meio. “Meu outro filho conseguiu seguir, fez a faculdade dele, casou, teve filhos. O outro filho, que é o mais velho, muito apegado com o Rodrigo teve uma depressão no começo. Sempre que fala do Rodrigo, ele fica muito angustiado. Eu nem gosto muito de falar com ele sobre isso”. Magna lembrou-se que o filho mais velho tinha uma moto que ele usava toda noite para procurar Rodrigo. Sempre que saía da faculdade, já de noite, pegava a moto na esperança de voltar com o irmão na garupa.  

Trotes e golpes 

Para fazer esta reportagem, eu tentei ligar pelo menos seis vezes para Magna para conhecer a história dela. A ligação só caía na caixa postal. Por mensagem, quando combinamos uma ligação, ela me explicou que,  desde que Rodrigo desapareceu, ela recebe muitos trotes por ligação. Golpistas dizem que estão com Rodrigo e que vão matá-lo, torturá-lo ou arrancar pedaços do corpo dele se ela não mandar dinheiro. Por isso ela ativou uma configuração para não receber ligações de números desconhecidos. 

“Teve gente me ligando e falando: ah, ele tá aqui. Ah, eu to vendo ele. E eu ia em tudo. Todas as coisas que falavam eu ia atrás. Fui para Goiânia, dormi na rua. Eu andei muito, mas eu via que eu não conseguia porque não tinha nada certo. Às vezes, até tinham pessoas parecidas e já me ligavam falando que era o Rodrigo”,  relembra Magna.

Paixões de Rodrigo 

Rodrigo estudava em uma escola pública e de regime integral. Na época que estudava, para entrar na escola era necessário fazer uma prova para ser aceito. Rodrigo, sempre estudioso, ingressou na escola. A instituição oferece cursos técnicos, principalmente de tecnologia, nos horários contrários às aulas. 

Foi em um desses que Rodrigo construiu um robô que a mãe guarda até hoje. Junto com as roupas e objetos pessoais do rapaz. “Eu não consigo me desfazer das roupas dele. Meu outro filho fala pra eu tentar e eu até tento, mas aí eu guardo de novo. Os cadernos dele, os livros dele, o robô dele”. 

Magna lembra-se que a maior paixão de Rodrigo era a computação. “O negócio dele era mais computador e computador. Na época ele já fazia formatação, já consertava computador. Era na escola o dia todo assim, quando chegava ia para a academia e no final de semana era computador de novo”. 

Esperança

Além de se lembrar das paixões do filho, do rosto e do jeito dele, Magna hoje busca ajuda nas redes sociais. Ela ainda publica fotos do filho na internet e participa de grupos de mães que tiveram seus filhos desaparecidos. 

Uma das fotos de Rodrigo que Magna publicou no Facebook dela. Essa foi publicada em agosto de 2022, quando Rodrigo completaria mais um ano de vida. A legenda foi: “Pedaço que falta em mim e doí muito , sangra…”

“Como agora as redes sociais são mais fortes, eu mexo com elas. Fora isso, eu acho que não tem mais o que fazer, já passou tanto tempo. Mas eu nunca perdi a esperança. Eu me imagino reencontrando ele. Me apeguei muito a Deus. Peço pra ele pra que seja pelo menos a última coisa da minha vida, encontrar com ele ou saber pelo menos o que aconteceu, se ele tá bem ou se aconteceu alguma”, disse Magna com o choro engasgado. 

Magna espera pelo dia que será completa de novo. Para ela, a saudade é o revés do parto. A mãe sonha com o dia em que vai abraçar o filho de novo. “Em todos os natais, todos os anos novos, todo dia das mães eu acho que ele vai chegar. Todo aniversário dele, todo meu aniversário eu acho que ele vai chegar”. 

Recanto das Emas (DF), 2001 

Era mais um final de semana comum na rotina de Ranara Lorrane Alves. A menina de 11 anos saiu de sua casa em Taguatinga e foi para a casa da mãe biológica no Recanto das Emas, a uma distância de cerca de 15 km. Ranara morava com o pai adotivo, mas, todos os sábados, ia para a casa da mãe biológica porque, além de o pai considerar importante um contato materno, ele mandava uma ajuda financeira para a mãe todas as vezes que Ranara ia para lá. A família biológica era muito grande e com problemas financeiros e, por isso, o tio de Marielly adotou a menina quando ela tinha seis meses de vida. 

Naquele 21 de novembro de 2001, a mãe buscou Ranara em Taguatinga e a levou para o Recanto das Emas, como sempre fazia aos sábados. A rotina era que a mãe levasse Ranara de volta para a casa do pai adotivo no domingo logo depois do almoço, também como sempre fazia. Mas naquele domingo foi diferente. 

A mãe deixaria Ranara no ponto de ônibus para que ela pegasse o transporte para casa, mas Ranara disse que não precisava e que ela iria sozinha até a parada. No caminho para a parada, Ranara passou em uma “vendinha” para comprar doces. E foi ali, naquele lugar que ela tanto gostava de ir, que Ranara foi vista e reconhecida pela última vez. O atendente do estabelecimento foi a última pessoa a ver Ranara. A família nunca mais a viu, nem os amigos.  

De um lado, Ranara ainda criança, antes do desaparecimento. Do outro, como ela estaria atualmente na progressão de idade feita em 2019 pela Polícia Civil do DF. 

“Foi dando o horário de ela chegar e nada de aparecer. Ficou de noite, meu tio ficou desesperado, a família entrou em pânico”. Isso é o que conta Marielly Neiva, de 38 anos, prima de Ranara. Ela é a única da família que tem forças para falar sobre o desaparecimento da menina. Ela conta que o tio, pai adotivo de Ranara, era muito próximo da menina. Eles tinham um carinho enorme um pelo outro. Pai de Ranara (e tio de Maryelle) vive com depressão desde o desaparecimento da filha.

Desespero 

O pai adotivo de Ranara chegou a ligar para a mãe dela. A mulher informou que Ranara havia saído fazia muito tempo e que ela já deveria ter chegado. Segundo Marielly, nessa hora o tormento foi ainda maior. A família foi para a delegacia, mas a orientação foi que esperassem 24 horas para registrar o boletim de ocorrência. 

“Foi aí que começou todo esse pesadelo. Colamos cartazes na cidade inteira, mas nenhuma pista. Nada. Ela desapareceu e não deixou nenhum rastro”, diz Marielly.

Depois que o boletim foi registrado, a polícia investigou o caso, mas não encontrou nada até hoje. Marielly se questiona o que pode ter acontecido com a prima. “Eu desconfio que aconteceu algum abuso, alguma violência na casa da mãe porque ela tinha resistência de ir para lá. Ela ia para lá como por obrigação”, explica Marielly. 

De acordo com Marielly, a menina tinha mais irmãos na outra casa, e alguns deles também foram adotados. O pai achava que era importante o contato com os irmãos e a mãe e não entendia porque Ranara não gostava de ir para lá. Na época, Marielly era adolescente e também não entendia. 

“Hoje, mais velha, com o entendimento que tenho, eu acho que ela sofria algum tipo de abuso da família. Tem horas que até acho que ela desapareceu por vontade própria por causa do sofrimento. Passa muita coisa na cabeça”, diz Marielly depois de um suspiro dolorido. Apesar da desconfiança, os abusos nunca foram confirmados. A reportagem não conseguiu contactar a família biológica da menina. 

Amor de pai 

O pai de Ranara convive com depressão até hoje, desde o desaparecimento. Ele também perdeu um dos filhos, que morreu depois de um quadro depressivo grave. Marielly conta que Ranara era o xodó do tio. Ele vive esperando a ligação da filha. 

 “O número fixo da loja do meu tio é o mesmo até hoje. Ele resistiu várias vezes em mudar de casa, mas precisou mudar porque é aluguel mas o telefone da loja é o mesmo desde o desaparecimento. Ele tem esperança que algum dia a Ranara vai ligar porque era o único número que ela sabia decorado”. 

Os objetos pessoais de Ranara ficam guardados e embalados na casa do tio na esperança de que a menina volte para buscar um dia.   

Reencontro 

A família espera ansiosamente pelo dia que vai encontrar Ranara. Marielly sente que a prima está viva e que um dia vai poder abraçá-la de novo. “Até hoje a gente tem esperança de encontrar, de ela dar notícias. Eu tenho para mim que a Ranara não morreu. Hoje, se Ranara estiver viva, e eu tenho fé que ela está porque a esperança nunca morre, ela deve ter 33 anos”. 

Marielly diz que a família convive com um um vazio. Ela se lembra perfeitamente dos traços da prima e imagina como ela está agora:“Ela era muito esperta, uma criança bem alegre, linda, parecia uma bonequinha loirinha dos olhos verdes. Eu imagino ela hoje já uma mulher”, relembra Marielly em tom sereno. Apesar de a memória estar ali todo dia, a saudade dói latejada. 

Sobradinho (DF) , 1999 

Ver as brigas violentas dos pais era muito comum para Kátia Liberato, hoje com 43 anos. Ela lembra que, durante a adolescência, tentava intervir em brigas em que o pai estava sob efeito de álcool. A moça se sentia no papel de proteger todo mundo, como a irmã mais velha de quatro irmãos. Naquele dia 10 de junho de 1999 Mirian Liberato, a mãe de Kátia, teve uma discussão com o companheiro. Aquela foi a última briga. Mirian saiu de casa depois da briga, aos 49 anos, e nunca mais voltou. 

Kátia, que tinha 15 anos na época, diz que sentia muita falta da mãe, esperava pela volta dela, mas não entendia bem o que estava acontecendo. Não associava a um caso de desaparecimento. E os adultos da família não se importaram em registrar o desaparecimento na época. 

De um lado, a última foto de Mirian antes de desaparecer. Do outro, como ela estaria atualmente na progressão de idade feita em 2021 pela Polícia Civil do DF.  

Por isso, Kátia foi até a delegacia na tentativa de ter alguma orientação,  mas não conseguiu nada porque era muito pequena. Os responsáveis alegaram que uma criança não poderia registrar boletim de ocorrência. Ela já havia ido na delegacia outras vezes quando os pais brigavam, mas nunca recebia atenção.  

“Eu ia na delegacia com queixa de alguma coisa, mas eu não era ouvida. Não tinha esse acolhimento como tem hoje”, relata. Foi só quando completou 18 anos, três anos depois do desaparecimento, que ela conseguiu registrar o boletim de ocorrência. 

Buscas

Desde então, Kátia nunca desistiu de procurar a mãe. “Quando eu fui ficando mais velha fui entendendo mais essa incerteza. Tenho procurado todas as alternativas que eu posso”. Kátia divulga e procura pela mãe nas redes sociais e pretende registrar boletins de desaparecimento em outros estados. Até hoje, só conseguiu fazer o registro no Distrito Federal e em Goiás.

Em 2021, o Governo Federal criou a primeira Campanha Nacional de Coleta de DNA de Familiares de Pessoas Desaparecidas. É previsto que, após o registro, a Polícia Civil recolha o material genético de um familiar da pessoa desaparecida para ajudar na possível identificação de pessoas vivas ou mortas. 

Como mais um sinal de esperança, Kátia diz que foi a primeira a coletar o DNA na campanha do DF. E só em outubro de 2024 foi que conseguiu fazer também a coleta em Goiás. Ela conseguiu registrar o desaparecimento também em Fortaleza (CE) em 2022. Kátia foi até a capital cearense porque é a cidade da família da mãe. Apesar disso, não conseguiu agendar a coleta de DNA na cidade. “Quando eu contei o meu relato, negaram fazer a coleta porque o desaparecimento não foi no estado. Eles ainda resistiram para fazer o boletim”, lamentou. 

Kátia quando coletou o DNA pela primeira vez, no DF.

Kátia relata que sentiu muita dificuldade ao mostrar interesse em fazer a coleta de DNA. Ela disse que os responsáveis em algumas das delegacias que foi não sabiam informá-la como era o processo exatamente. Ela conseguiu entender e fazer todos os passos porque um amigo que sabe do assunto a ajudou. 

“Eu tenho uma história, um contexto e as pessoas ainda deixam de ouvir. Um serviço que deveria ser mais efetivo e não é. Eu sinto isso. Eu não sei se é pelo tempo que as pessoas julgam sem dar a chance de ir atrás dela”, reclama Kátia.  

Ela se questiona se, pelo tempo que passou da ocorrência, os próprios investigadores não ficariam desmotivados em procurar. Se pergunta se, caso ela tivesse sido ouvida mesmo quando criança, a situação não poderia ser diferente hoje. Ou ainda se naquela época tivesse os recursos tecnológicos que tem hoje, a mãe já estaria com os filhos de novo. 

Protocolo

Na tentativa de uma busca mais rápida e efetiva, em agosto de 2024 foi criado, pelo governo local, o Protocolo de Busca Imediata no DF. De acordo com o subsecretário Jasiel Fernandes, são 30 órgãos do GDF que podem receber alertas assim que o registro de desaparecimento é feito. A ideia é que o trabalho possa ocorrer de forma integrada. 

A lista de locais inclui delegacias de Polícia Civil, quarteis da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiro, sedes do Detran, unidades das secretarias de Saúde e da Educação, postos da Polícia Rodoviária Federal e da Agência Nacional de Transportes e Turismo (ANTT). 

O subsecretário exemplifica que essa ação integrada funcionou em um caso recente de uma enfermeira que localizou um homem desaparecido no Hospital de Base, na Asa Sul, depois do protocolo enviado à Secretaria de Saúde. “Provavelmente, o encontro desse homem teria passado batido se não fosse pelo protocolo”, ressalta Fernandes. 

Passado e futuro 

Perguntei para Kátia como foi passar a infância sem a presença da mãe e sem saber onde ela estava. Ela ficou alguns segundos em silêncio e respondeu: “As palavras faltam. Era muito inconstante porque eu via a mãe de todo mundo e não via a minha”. Kátia e os irmãos foram criados pelo pai e pela avó paterna. Ela recorda que, quando criança, chegaram a procurar na avó uma figura materna. 

Apesar de todo o carinho da avó, não era o mesmo sentimento de mãe. Kátia tem memórias marcantes da mãe. “Foi ela que me ensinou a ler. A forma carinhosa que ela educava a gente eu levei para os meus filhos. Ela tinha um jeito especial de educar. Lembro do jeito doce dela, a meiguice”. 

Kátia, ainda quando bebê, no colo da mãe, Mirian. É uma das poucas fotos que as duas têm juntas.  

Hoje Kátia é mãe e diz que a vida com os filhos a ocupou e ajudou a tirar o foco exclusivo na dor. Eles a ajudam nos momentos de tanta incerteza. “É uma ferida que não cicatriza nunca para mim. Tem momentos que eu estou feliz, tem momentos que não. Eu vivo em uma inconstância de sentimentos”.

Ela passou por vários tratamentos psicológicos e psiquiátricos para ter a força de procurar pela mãe até hoje. Não desistiu de ter esperanças. Receber uma notícia qualquer da mãe seria um marco para ela. “Já imaginei o reencontro de várias formas. Ter uma notícia qualquer, ou de encontro feliz ou triste”. 

“Eu queria chegar ao fim do ciclo da minha vida com notícias dela”. Para Kátia, depois dessa incerteza, a saudade é o pior castigocomo escreveu Chico Buarque na música Pedaço de Mimcom versos inspirados na dor da estilista Zuzu Angel (1921 – 1976), que procurou o filho, Stuart, vítima da ditadura militar, até o último dia de vida. Faz lembrar o desespero de pelo menos seis famílias por dia na capital do País que têm alguma pessoa desaparecida. Faz lembrar que cada segundo pode fazer a diferença. Faz lembrar que a dor de uma família deveria ser a dor de todos nós. A minha dor e a sua dor pelas incertezas de tantas famílias. 

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