Vale à pena ser bocó

Quero me aprofundar mais em bocozice, mas não confunda tal palavra com estupidez, que é uma doença que apequena a alma. O que, vale dizer, é doença grave a infestar todos os cantos do mundo. A bocozice que busco é poética. É da que fala o poeta Manoel de Barros, que é meu manual poético de passarinhos. Segundo ele, uma “velha paraguaia” assim o chamou ao vê-lo, quando moço, “catar caracóis e pedrinhas na beira do rio”. O poeta conta que correu à sua casa para consultar o significado da respectiva palavra nos dicionários. Relata que “se riu de gostar” de nove significados que encontrou e os separou. O primeiro deles foi: “bocó é sempre alguém acrescentado de criança”. Os oito são desnecessários citar.

Filme “Só dez por cento é mentira”, filme-documentário, mostra muito do poeta Manoel de Barros e pouco do homem que ele foi |
Crédito: Reprodução

A velha paraguaia, coitada, não sabe “das vantagens de ser bobo”, conforme disse a misteriosa Clarice Lispector numa crônica intitulada com as palavras dentro das aspas. Na crônica de Clarice, ela diz algo que a velha paraguaia não teve olhos para enxergar: “O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem”. O bobo clariciano e o bocó manoelino passam longe dos “homens ocos no poema de T.S. Eliot, “homens empalhados” e com o “elmo cheio de nada”.

“Os homens ocos” são absurdamente diferentes do principezinho de Exupéry, que “tinha, sobre coisas sérias, ideias muito diversas das ideias das pessoas grandes”. A satisfação de Manoel de Barros em ser bocó está justamente nesse jeito pueril de pensar do pequeno príncipe. O diálogo que este tem com um homem de negócios de um planeta que visitara é maravilhoso em ensinamentos. Aliás todo o clássico “O Pequeno Príncipe” é maravilhoso nesse sentido. Contar estrelas era o negócio do homem, e seu tempo era todo tomado por essa tarefa. Ele se dizia dono delas. O principezinho cutucou-o, dizendo que ser proprietário de lenço e de flor há como usá-los, mas que não há como fazer uso prático das estrelas. (O parnasiano Olavo Bilac certamente contestaria o principezinho, alegando que elas falam com os poetas…)

Bocozice foi o assunto que tomou conta de grande parte do tempo da conversa que tive recentemente com minha amiga Ângela Lobo, poeta de meia-pataca. Já falei dela algumas vezes aqui neste espaço. Temos uma sintonia fina em assuntos manoelinos, ou melhor, sobre os assuntos da natureza, que são tão presentes na poesia dele. E junto a isso a sua poesia recorrente em personificar elementos da natureza. Combinamos de assistir ao filme-documentário “Só dez por cento é mentira”, que tem Manoel de Barros como personagem e é dirigido pelo cineasta Pedro Cesar, que conseguiu realizar uma grande façanha: gravar com o poeta, que se recusava a dar entrevistas gravadas. Barros amparava sua recusa afirmando que a “palavra oral não dá rascunho”. O diretor conta no filme que esteve para desistir da filmagem. Entretanto, ao dizer que fazer o filme com o poeta era um sonho seu, Barros, com sua profundidade sobre o nada, acabou cedendo, mas já no início do filme, diz que, se houvesse alguma pergunta que não aprovasse, não a responderia.

Ainda bem que o poeta mudou de ideia, pois, do contrário, esse filme maravilhoso com ele não existiria. O documentário mostra um pouco do homem e muito do poeta. Ângela e eu assistimos ao filme, cada um na sua casa, e estamos convictos de que vale à pena ser bocó. Tanto é que foi isso que possibilitou que a pena de Barros encontrasse “mais prazer de brincar com as palavras do que pensar com elas”. Só mesmo um sujeito bocó pode saber “que os passarinhos são pessoas mais importantes que aviões. Porque vêm dos inícios do mundo e os aviões são acessórios”. Só mesmo um sujeito bocó pode “renovar o homem usando borboletas”.

Falando em borboletas, Exupéry era também bocó, pois conseguiu ouvir uma rosa dizer algo muito especial e filosófico a um pequeno príncipe: “É preciso que eu suporte duas ou três larvas se eu quiser conhecer as borboletas”. Quem não é bocó não consegue perceber que as borboletas são poemas que eclodem das lagartas. Daí o lado bom de suportar as lagartas.

Lagarta no processo inicial de sua fase de crisálida | Foto: Sinésio Dioliveira

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

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