As maravilhas Veras e Santa Inês

Como estou aposentada e não faço mais nada por dinheiro, tenho tido tempo pra pensar que praticamente todos os nossos movimentos são uma manifestação de narcisismo. Tudo e todos que admiramos representam nosso amor por algo que contemos. Muitos devem ter sacado isso antes e eu desconheço por conta da minha ignorância. Mas fico contente por ter sido um pensamento a que cheguei por meio de massa cinzenta própria.Faz uns dois meses, mandei um zap de parabéns para Franklin Carvalho a propósito de uma crônica tão linda que eu não conseguia tirar da cabeça. Ele me agradeceu enviando os links no YouTube dos documentários Deveras e Veras, sobre um sujeito por quem me apaixonei de imediato e sem remédio. Era alguém que eu conhecia de nome, dos tempos de patricinha que lia diariamente a coluna de July n’A TARDE.Eu achava que Veras era mulher porque July sempre trazia os nomes das mulheres antes dos nomes dos maridos, seguidos do sobrenome. Assim: Fulana e Fulano de Tal. Mas eles eram apenas “Veras e Popó”, como se fossem uma instituição.Muitos anos depois, ouvi dizer que Veras estava morando na rua e a fotógrafa Arlete Soares, da Editora Corrupio, queria publicar um livro sobre ele, mas ele não dava bola. Soube, então, que era homem e abandonara as colunas sociais para mendigar nos três ou cinco idiomas que falava (há controvérsias). Só agora, quando tenho a idade com que ele morreu, em 2006, me veio a oportunidade de conhecê-lo. E o fascínio foi tanto que encasquetei em lhe prestar uma homenagem. Achei uma foto dele nos tempos áureos e mandei fazer um azulejo declarando meu encanto. Aproveitei uma viagem a Jaguaquara, onde meus pais nasceram e cresceram, para ir a Ipiaú e colocá-lo em seu túmulo. Achei que estaria lá, bonitinho, e bastaria deitar meu azulejo sobre ele.Não imaginamos, meu companheiro Artur e eu, que passaríamos horas até encontrá-lo no pequeno cemitério, com a ajuda das imagens de um dos documentários. Não havia nada além uma velha cruz de madeira sobre a terra, sem identificação. Talvez como ele gostaria, mas Seu Raimundo, o coveiro, fez uma base de cimento e lá fincamos nossa homenagem. Combinamos que pintaria a cruz também, ainda que Veras se remexa todo. Mas é por reverência ao seu espírito, querido, e você sabe do valor dos gestos desinteressados. Ainda que narcisistas, porque exaltando elementos também existentes em mim, mas principalmente por sua coragem e desprendimento de exercê-los sem censuras.Realizamos um vídeo sobre a experiência: Veras – Uma linda aventura maluca e beleza. Está no YouTube. Aclamo a força que moveu Veras, van Gogh e tantos outros. Louvo quem aprecia espremer espinhas e cravos, expulsar as pústulas que se escondem em nós. Minha mãe não gostava, e é a única queixa que tenho dela.Nessa viagem a Quara, estivemos também em Santa Inês, que tem réplicas de dinossauros espalhadas por toda parte. E um Museu Jurássico que está em reforma, mas Maria, muito gentil, nos deixou entrar. As obras são do escultor Anilson Borges (e equipe), que imagino ter desenvolvido com a prefeitura toda a ideia. No museu, há uma sala que trata das festas populares e uma galeria com fotos e depoimentos de moradores. Não ouvimos os depoimentos, porém meus olhos se encheram de lágrimas só de ver o amor e respeito ao povo e à cultura popular. É isso o que um governo decente faz.A cidade é limpa, com lindas praças muito bem cuidadas, pérola e exemplo para qualquer administração. Tem cozinha comunitária e deve haver muito mais, que não pudemos conhecer na rápida visita. Imagino que atrairá muitos turistas com o parque e o museu, o que contribuirá não apenas para a economia como para a autoestima dos habitantes. Parabéns a Anilson e aos prefeitos que verdadeiramente serviram e servem a seu povo.Estou certa de que Veras também se comoveria com Santa Inês. Pelos testemunhos que tenho colhido de pessoas que o conheceram, era um ser adorável. Figura ímpar, como se diz. Desmedida, vivendo com intensidade mil tudo o que a vida lhe apresentou. E a criatura aqui, que já passou dos 20, dirigiu duas horas de ida e duas de volta, numa estrada onde só tem caminhão, para lhe declarar amor desvairado. Estou orgulhosa de mim, embora não tenha do que me orgulhar. Nasci assim, e isso deve vir de lá atrás.*ró-ã é autora de Dor de facão & Brevidades
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