‘Indignação com mensalão, Lava Jato, sem entender as causas, faz crises se repetirem’

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São Paulo, 18 – O Brasil vive um ciclo constante de indignação, mas raramente transforma essa revolta em compreensão e mudança concreta, que reflitam em soluções capazes de trazer melhorias para o País. A avaliação é do articulista e advogado Nicolau da Rocha Cavalcanti, para quem essa incapacidade de enxergar além do momento torna o debate público refém de reações emocionais. “Indignação com mensalão, Lava Jato e com decisões do STF (Supremo Tribunal Federal), sem entender as causas, faz crises se repetirem”, diz.

Em entrevista ao Estadão, o advogado observa que a repetição cíclica dos mesmos problemas está diretamente ligada à falta de aprofundamento na análise dos acontecimentos. “O grande ponto é que não podemos nos limitar à indignação. Ela tem um aspecto curioso, pois muitas vezes significa também uma incompreensão. É fácil sentir indignação diante de algo que não compreendemos. E me parece que esse é um dos nossos grandes desafios como sociedade: ficarmos indignados sem compreender o que está acontecendo”, afirma.

Essa reflexão guia o lançamento de O Perigoso Encanto da Indignação, que chega ao público nesta quarta-feira, 19, em São Paulo. A coletânea reúne 61 artigos publicados no Estadão entre 2011 e 2024 e propõe uma análise crítica sobre os desafios contemporâneos da política, da justiça e da mídia, buscando identificar os “pontos cegos” da sociedade. ” O objetivo sempre foi tentar encontrar um fio condutor. Ainda que os temas sejam variados, a questão central é: qual é a nossa incapacidade de ver a realidade?”, diz Cavalcanti, que foi editorialista do jornal por uma década e hoje mantém uma coluna quinzenal.

Cavalcanti analisa o papel do Supremo Tribunal Federal (STF), a crise de comunicação no Judiciário e o impacto das redes sociais no jornalismo. Para ele, o Supremo enfrenta o desafio urgente de comunicar melhor suas decisões à sociedade, tornando-as mais compreensíveis. Sobre o jornalismo, defende que, mesmo com a ascensão das redes sociais, o papel da imprensa segue essencial: “O método jornalístico – esse olhar crítico, o cuidado no tratamento dos fatos, a busca por informação relevante, segura, confiável e passível de correção – só se tornou ainda mais essencial”.

Ele destaca também a crise do debate público e a dificuldade da sociedade em conviver com o contraditório. “Me parece que a polarização, em si, é um fenômeno natural da política, já que envolve a existência de polos opostos defendendo ideias distintas. O problema, no entanto, surge quando essa polarização se torna radical, transformando o adversário em um inimigo, em uma antítese que precisa ser eliminada.

Confira os principais trechos da entrevista com Nicolau da Rocha Cavalcanti:

O livro reúne artigos publicados ao longo de mais de uma década no Estadão. Como surgiu a ideia de organizá-los em coletânea? Houve alguma motivação específica para isso agora?

De alguma forma, sempre procurei estabelecer, nos temas dos meus artigos, assuntos que não fossem apenas do dia a dia, sabe? Pegavam os movimentos macro da sociedade, as grandes questões, tentando compreender ou expor as nossas próprias cegueiras em relação a esses movimentos.

Eu pensava em um jornalismo anticíclico, que não ficasse restrito ao assunto da semana. Então, de algum jeito, ao longo do tempo, fui fechando um ciclo. Fui editorialista do Estadão por dez anos e pedi demissão para voltar exclusivamente à advocacia, embora tenha mantido minha coluna.

Mas o objetivo sempre foi tentar encontrar um fio condutor. Ainda que os temas sejam variados, a questão central é: qual é a nossa incapacidade de ver a realidade? Quais são os nossos pontos cegos coletivos?

O título O Perigoso Encanto da Indignação sugere um alerta sobre os riscos de certas posturas no debate público. O que considera mais perigoso na forma como a indignação é usada hoje no Brasil?

Propriamente, me parece que a indignação é algo positivo. A capacidade de indignar-se é uma característica importante e bastante discutida. O grande ponto é que não podemos nos limitar à indignação. Ela tem um aspecto curioso, pois muitas vezes significa também uma incompreensão.

Esse é um dos nossos grandes desafios como sociedade: ficarmos indignados sem compreender o que está acontecendo – seja um julgamento no STF, um movimento político ou uma situação social. Sentimos indignação, mas, para mim, o que fica muito claro é que essa reação, por si só, é insuficiente.

O livro trata de como, ao longo da história do Brasil, os mesmos problemas se repetem. Por exemplo, nos anos 1920, já estávamos indignados com a corrupção e outras questões, e esses mesmos temas continuam voltando. De alguma forma, se permanecermos apenas na indignação, sem aprofundar a análise, nossa resposta enquanto sociedade será superficial e frágil. Indignação com mensalão, Lava Jato e com decisões do STF, sem entender as causas, faz crises se repetirem. Os efeitos disso estão aí: ficamos indignados com essas questões, e, ainda assim, as coisas se repetem.

O senhor menciona que há grandes incompreensões contemporâneas sobre o Estado, o jornalismo e a sociedade. Qual delas considera a mais urgente de ser corrigida?

O STF e o tema da Constituição são profundamente mal compreendidos. Nossa Constituição foi elaborada em um momento de transição política, e, por isso, muitas das soluções adotadas foram, de certo modo, parciais. O compromisso que conseguimos em 1988 foi o possível dentro daquele contexto, e várias questões que não puderam ser resolvidas na época continuam em aberto até hoje.

A Constituição, portanto, é um exemplo claro de incompreensão. O Supremo Tribunal Federal também. O STF é o órgão máximo do Judiciário, mas não há dúvida de que, no nosso arranjo institucional, ele possui uma dimensão política. Tanto é assim que a nomeação de seus ministros envolve uma articulação entre o Executivo e o Legislativo, via Senado. De alguma forma, tendemos a esquecer essa dimensão política, o que não significa que o STF seja apenas político. Ele é um tribunal jurídico, mas permeado por influências políticas – algo desejável e refletido no modelo constitucional que seguimos, inspirado, nesse caso, na Suprema Corte dos Estados Unidos.

Outro ponto de incompreensão, para mim, diz respeito ao jornalismo, especialmente no contexto das redes sociais. Há um equívoco recorrente sobre o papel do jornalismo: muitos acreditam que ele deve simplesmente dizer aquilo que o leitor deseja ouvir. Mas o critério de publicação sempre foi – ou deveria ser – a relevância, uma curadoria qualificada dos assuntos.

O senhor defende que “o STF não foi feito para mar calmo” e que seu papel exige lidar com tensões políticas. Como vê o equilíbrio entre a atuação técnica da Corte e sua inevitável exposição política?

Acho que o STF sempre viverá no centro de controvérsias. Não tem jeito. Ele é um órgão constitucional, lidando com questões constitucionais e com os grandes debates da sociedade. E essa controvérsia, na minha visão, não é necessariamente algo ruim. Pelo contrário, significa que há relevância e interesse da população em entender e acompanhar o que está acontecendo.

Por outro lado, isso não significa que o STF tenha uma carta branca para interferir em tudo. Não concordo com essa ideia recorrente de que o tribunal está hipertrofiado. Ainda que algumas decisões possam, na minha opinião, ter extrapolado, isso não justifica afirmar que a Corte, como um todo, está hipertrofiada.

Em um de seus artigos, o senhor discute a relação entre desinformação e pluralismo. Qual acredita ser o melhor caminho para combater fake news?

Me parece que o problema da desinformação sempre esteve presente nas sociedades. É uma questão que envolve múltiplas frentes: a educação dos jovens, o hábito de leitura, a capacidade interpretativa, o pensamento crítico e, sim, também a checagem de fatos. Hoje, por exemplo, está mais claro que nem tudo o que nos chega pelo celular ou pelas redes sociais é confiável.

O senhor menciona que a cultura da indignação pode ser sedutora, mas nem sempre produtiva. Como transformar a indignação legítima em ação política eficaz?

Me parece que a indignação, mais do que um fim em si mesma, deve servir como um impulso para os passos seguintes: estudar o problema, debater sobre ele e articular coletivamente soluções. A indignação precisa ser essa faísca inicial para avançarmos. O caminho seguinte deve ser aprimorar nosso diagnóstico sobre a realidade, compreendê-la melhor e, a partir daí, buscar soluções realistas e factíveis.

Um exemplo concreto, que é um tema que me mobiliza muito, é a educação pública. Existem iniciativas e práticas absolutamente espetaculares em todos os níveis no Brasil. No entanto, muitas vezes, ficamos apenas indignados, sem buscar conhecer, incentivar ou articular soluções coletivas dentro de nossas possibilidades para melhorar esse cenário. Acho que a realidade é muito mais positiva do que imaginamos.

Estadão Conteúdo

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