Bolsa Família afeta decisão de migrar após evento climático extremo

ALEXA SALOMÃO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

O Bolsa Família aumenta a resiliência e afeta a decisão de migração dos agricultores mais pobres quando castigados por secas. Essa é a conclusão da primeira pesquisa a correlacionar em detalhe programas sociais e mudanças climáticas em áreas rurais do Brasil, realizada pelo IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social).

A partir da associação de inúmeras bases de dados, a entidade contabilizou a existência de 14,3 milhões de produtores rurais vulneráveis, 76% beneficiários do Bolsa Família. Focou o comportamento dos que estavam em áreas afetadas por secas mais fortes, de 2015 a 2019. Por fim, monitorou como se moveram geograficamente -daí o estudo ser intitulado “Política Social e Resiliência: Uma análise geoespacial do impacto das mudanças climáticas nas decisões de migração entre produtores agropecuários vulneráveis”.

Pouco mais de 4,6 milhões desses agricultores, sendo 76% deles beneficiários de Bolsa Família, residiam em locais onde ocorreram fortes secas. Moravam em 10% do território onde menos choveu. Nesses pontos, a taxa de beneficiários do Bolsa Família que deixou as suas residências foi 4% menor em relação à de quem não recebia o auxílio.

Restringindo ainda mais o nível de chuvas, o estudo identificou que, dentro desse grupo, 520 mil (71% beneficiários do Bolsa Família) sofreram com eventos extremos -estavam em 1% da área mais seca do Brasil. Nesses pontos, ocorreu fenômeno inverso. A taxa de beneficiários do Bolsa Família que deixou suas residências foi 7% maior do que entre aqueles que não recebiam o Bolsa Família.

O economista Paulo Tafner, presidente do IMDS, explica que a pesquisa olha o fenômeno da migração a partir de duas lentes combinadas: a seca na mudança climática e a renda garantida do Bolsa Família.

“O estudo mostra que o Bolsa Família ajuda o beneficiário a resistir quando a seca é forte, porém contornável. Em contrapartida, em caso de estiagem rara, extrema, ajuda ele a migrar”, diz Tafner.

“Ou seja, não há uma decisão linear quando se trata de mudança climática, pois a decisão depende da gravidade da seca e da capacidade de adaptação de cada um, mas podemos afirmar que o Bolsa Família ampara a decisão.”

Além do ineditismo do tema, a pesquisa do IMDS ainda tem como diferencial o refinamento metodológico.

Identificou e filtrou inscritos no Cadastro Único e no Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que oferece seguro em caso de alterações climáticas. Foi feita ainda a análise das outras variáveis sobre a vida das pessoas que poderiam influenciar na decisão de ficar ou partir, como renda da família, idade, escolaridade, emprego, se a casa era própria ou alugada, entre outras questões.

Considerou também o histórico de precipitação, não apenas de 2015 a 2019, mas associando séries históricas desde 1981, para fazer comparações. O índice pluviométrico ajudou a identificar especialmente o tamanho do impacto da seca nos meses mais importantes para o cultivo das safras de cada localidade.

Como teve acesso ao dado dos indivíduos, fez o georreferenciamento -mapeou o clima em cada área e a localização dos produtores a partir dos registros de estiagens.

Assim, conseguiu identificar, por exemplo, que quem migrou não foi para longe. Boa parte mudou de endereço no mesmo município. No máximo, a transferência ocorreu para outra cidade próxima, no interior do mesmo estado, indicando a tentativa de adaptação no ambiente que já conhecem.

Estudos mostram que pessoas que sofrem com eventos climáticos e ambientais tentam primeiro se adaptar antes de abandonar um local.

“Aquele fluxo intenso nas grandes secas do passado, do interior para capitais, inclusive as maiores, como São Paulo e Rio, não existe mais”, afirma Tafner.

A Bahia figura como estado com o maior número de agricultores vulneráveis, 2,5 milhões, e quase metade, cerca de 1,2 milhão, foi afetada por estiagens. Entre os que migraram, a maioria trocou de endereço no município onde já vivia.

Entre as localidades mais procuradas por quem trocou de cidade estão Euclides da Cunha, Biritinga, Serrinha a Araci. Todas estão situadas no chamado Polígono da Seca, uma extensa área sujeita a estiagens recorrentes, abrangendo municípios em nove estados.

Proporcionalmente, porém, o Maranhão sofreu mais. Entre 1,6 milhão de agricultores vulneráveis, 920 mil, 57%, foram afetados por secas severas. A maioria que mudou trocou de endereço no mesmo município.

Uma das poucos capitais eleita como top de busca por migrantes foi Teresina, no Piauí. As cidades que mais atraíram migrantes no estado também foram as menores, como Barras, Regeneração e Picos.

Minas Gerais aparece como o estado mais prejudicado do Sudeste, com quase meio milhão de afetados por secas. As cidades mais procuradas por quem migrou ficam no norte mineiro, a área mais afetada por estiagens -Montes Claros, Januária, Coração de Jesus e Jaíba.

O pesquisador Vinicius Schuabb, coautor do estudo, lembra que, nas sociedades modernas, migrar é incomum. A tendência das pessoas é permanecer nos locais onde têm vínculos sociais, culturais, econômicos e afetivos.

Nesse aspecto, a proposta do trabalho foi organizar dados para identificar como tem sido a decisão de migração entre os mais vulneráveis diante de eventos climáticos extremos, e contribuir com informações consistentes para elaboração de políticas públicas que possam dar suporte a esse segmento, seja para migrar ou reforçar a adaptação -o que tecnicamente se mostrar mais adequado. Ou seja, outros estudos são importantes.

A advogada Erika Ramos, cofundadora da Resame (Rede Sul Americana para Migrações Ambientais), diz que, apesar de secas e chuvas extremas e eventos relacionados -como incêndios e enchentes- já serem uma constante, as vítimas desses eventos, especialmente os mais vulneráveis, permanecem invisíveis.

Na sua avaliação, é a produção de pesquisas que vai levar à criação de amparo aos excluídos climáticos.

A Resame é uma organização independente criada por pesquisadores que busca justamente reunir dados sobre o efeito de alterações ambientais para viabilizar a formulação de políticas públicas e ferramentas jurídicos em favor dessas pessoas.

“Não existe, por exemplo, a figura do refugiado ambiental, ou auxílios formais a vítimas de alteração climática”, diz ela. “As enchentes até sensibilizam a mídia e as autoridades, porque as pessoas são expulsas de suas casas, mas as secas ainda são crises silenciosas.”

Realizar trabalhos mais detalhados no Brasil, porém, está cada vez mais difícil. O estudo do IMDS, por exemplo, não pode avançar em anos recentes, por causa de restrições criadas pela LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). Não foi possível, por exemplo, identificar as migrações em 2024, quando 20% do território brasileiro sofreu com seca severa ou extrema, segundo o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais).

“Está ocorrendo um exagero na aplicação da LGPD que faz a pesquisa no Brasil andar para trás”, afirma Tafner.

O IMDS prepara um paper para discussão internacional sobre a pesquisa. A próxima etapa dentro dessa temática é estudar o efeito do Bolsa Família nos casos de eventos climáticos em áreas urbanas, especialmente temporais que levam a deslizamentos e enchentes.

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