Opinião | Flores para Mujica: as cartas que nunca serão lidas

Há algo de profundamente íntimo no ato de escrever uma carta. O papel em branco acolhe nossas palavras mais sinceras. Os dedos encontram ali uma pista de dança para abraçar a caneta e bailar, hesitando entre revelar e esconder sentimentos. Depois, vem o ato de fechar o envelope, enviar, e a expectativa de que alguém, do outro lado, se conecte com aquelas palavras.

Mas e quando as cartas não chegam? Quando se perdem antes de alcançar seu destino? São como flores que murcham antes de encontrar o vaso certo, ou aquelas deixadas sobre a lápide do tempo, esperando por olhos que nunca as abrirão.

“Obras de arte são de uma infinita solidão, e nada as torna tão pouco acessíveis quanto a crítica. Só o amor pode captá-las e sustentá-las, e pode ser justo com elas.” As palavras de Rainer Maria Rilke, em “Cartas a um Jovem Poeta”, ecoam aqui. O livro não me chegou pelos correios, mas por uma mensagem digital da jovem atriz Tamires Liz, que o recebeu como recomendação da presidente da Academia Brasileira de Cinema, Bárbara Paz. As formas mudaram, mas a essência permanece: as palavras atravessam espaços e tempos, costurando destinos.

Dizem que estamos abandonando as cartas. Que o jovem, com o celular em mãos, está proclamando seu fim. Talvez seja verdade. Mas as cartas não são as únicas a partir: José “Pepe” Mujica também anunciou sua despedida. Com sua voz firme e resignada, ele declarou: “Estou morrendo!” Uma frase direta, despida de adornos, como tudo que sempre foi.

Mujica, o florista, o sobrevivente, o militante, planta agora sementes de despedida em um solo que não mais o sustentará. O câncer tomou seu corpo, mas não sua alma. Como aceitar que pessoas boas também morrem? Não deveria ser permitido!

“A natureza inventou a vida, que é maravilhosa. Mas todas as coisas vivas estão condenadas a morrer. Para sustentar o motor da vida, ela inventou o amor.” Assim ele nos ensinou, com a simplicidade de quem sempre soube que o amor é a raiz de tudo. Mujica viveu como uma florista que cultiva tanto as margaridas quanto as esperanças. Seu legado não é apenas político; é humano, é sobre transformar dor em aprendizado, solidão em luta e vida em legado.

Quatorze anos em uma solitária não o fizeram murchar. A ditadura militar tentou roubar sua luz, mas ele transformou o silêncio das paredes frias em sementes para mudar o mundo. Cada ato seu foi um regador de dignidade, que nutria o mais humilde dos terrenos: o coração dos simples.

Sêneca escreveu: “Não é uma questão de morrer cedo ou tarde, mas de morrer bem ou mal.” Mujica não está apenas morrendo bem – ele está ensinando a todos nós como se faz isso. Com dignidade, com amor, com a certeza de que sua existência teve um propósito.

A carta que escrevo para ele talvez nunca seja lida. Mas isso não importa. Algumas palavras não nascem para alcançar olhos, mas para existir, para perfumar o ar, como um jardim que sobrevive muito depois que o florista parte.

Mujica nos deixa flores que continuarão desabrochando: o amor pela vida, pela simplicidade, pela humanidade. E mesmo que ele se vá, o jardim que cultivou continuará a florescer, regado por nossas lágrimas e pelos sorrisos que suas lembranças ainda despertarão.

Tarciso Souza, jornalista e empresário

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