Das cinzas à vida: voluntários ressignificam o cerrado no DF após queimadas

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Melissa está com uma muda de Jatobá nas mãos. Com um rastelo, já afastou as folhas queimadas. Com a pá nas mãos e chapéu na cabeça (tomada de preocupação), a voluntária, que no dia a dia é brigadista ambiental, está coberta com roupas que a protegem do sol e do ar que ainda ardem na pele depois de tanto fogo.

Há ainda uma infinidade de árvores para plantar e sementes para espalhar. Só elas podem trazer de volta o que o fogo destruiu. Mais pelo menos 3 mil moradores da própria comunidade que cerca a Floresta Nacional de Brasília, em Taguatinga (DF), se inscreveram no voluntariado para mudar o cenário. O trabalho é exaustivo, mas eles olham emocionados, imaginando que o verde vai tomar o lugar das cinzas. Querem que o Jatobá, tão presente no cerrado brasiliense, volte a crescer.

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Foto: Ana Clara Mendonça

O início da angústia

Foi no dia 3 de setembro que a primeira faísca surgiu na Floresta Nacional de Brasília (Flona). O incêndio que durou 5 dias queimou quase a metade da floresta com 45% de área desmatada. Depois de quatro dias, em 11 de setembro, a corrente de solidariedade se moveu para restaurar o que foi perdido. 

As casas próximas foram tomadas pela fumaça, pela fuligem no ar e pelas lágrimas caídas. Era mais de 2,9 mil hectares de cerrado cobertos pelo fogo na Floresta Nacional. Já eram 160 dias sem uma gota de chuva na capital.

O ano de 2024 quebrou recordes de queimadas em todo DF. O período de estiagem registrou a maior quantidade de incêndios desde 2010, de acordo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Confira série histórica de incêndios

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Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)

Em todo o ano, foram registrados 346 focos de incêndio, sendo que só em setembro foram 168.  Nesse tempo, todas as unidades de conservação federais, que estão sob gestão do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), apresentaram áreas atingidas por incêndios na capital. 

Equipes em ação

Os voluntários se dividiram em equipes com diferentes funções: desobstrução de áreas, manuseio de equipamentos florestais, plantio de sementes e mudas para o reflorestamento. Nos primeiros dias de dezembro em que a reportagem acompanhou o processo, havia pelo menos 122 participantes equipados, preocupados, mas empolgados em mudar a fotografia de devastação. 

Desde o primeiro dia de voluntariado, a brigadista ambiental Melissa Silva, de 37 anos, participa em diversas frentes, como restauração, manejo de plantas e distribuição de alimentos para os animais. Para ela, as ações se apresentam como fonte de esperança diante de tanto fogo.

“Ver a floresta queimar é uma grande tristeza, mas é esperançoso ver a movimentação das pessoas. Aqui é como se fosse o quintal da minha casa, pela proximidade e afeto que tenho. O meu trabalho é para retribuir o que a Flona faz por mim”.

A coordenadora dos trabalhos voluntários da Flona, Juliana Mendes, de 24 anos, se surpreendeu com a união das pessoas para manter a floresta viva.

“Nós contamos com braços e abraços das pessoas porque esse coletivo nos ajuda a seguir em frente”, afirmou.

Juliana também é voluntária há quatro anos e atua nas ações da unidade, como no reflorestamento, manutenção e limpeza da unidade. Ela conta que as ações solidárias deram o primeiro passo para que o projeto ganhasse vida.

“Isso foi o que deu gás, deu forças para continuar. Desde o início do incêndio foi muito desgastante, muito triste ver a floresta em chamas”.


De trilheira à voluntária


A professora Sandra Saldanha de 53 anos foi uma das voluntárias no grupo de reflorestamento. Ela ajudou a capinar as áreas queimadas e a colocar novas mudas e sementes. Ela, que antes frequentava o parque para fazer trilhas todos os finais de semana, agora foi por um motivo diferente:

“Eu fiquei muito triste quando vi tudo queimado. Chorei muito. Não conseguia nem ver. A floresta era como minha casa, meu templo, e agora parecia um cemitério”.

Além de atuar na área como analista de desenvolvimento e fiscalização agropecuária da Secretaria de Estado da Agricultura, Sandra se mantém ativa em causas ambientais e grupos de apoio ao meio ambiente. Ao saber das ações de reflorestamento, não pensou duas vezes: ela queria ter de volta o sentimento de “paz” de quando fazia as trilhas semanais.

“Fui chamada para esse plantio, e aqui estou, feliz por poder trazer essas árvores, que costumo chamar de ‘povo em pé’, de volta à vida”.

Agora, ao olhar para o futuro, ela se sente como uma “mãe gerando novos frutos”. “É uma sensação de esperança. Eu tenho certeza de que a natureza vai se regenerar. As pessoas também precisam entender que cada ação, por menor que seja, faz diferença”. No entanto, ela acredita que, se houvesse mais pessoas envolvidas e sensibilizadas, a recuperação ambiental seria ainda mais rápida e eficaz. 

Fábio dos Santos Miranda, de 43 anos, é engenheiro florestal e chefe da unidade e da Área de Proteção Ambiental (APA) da Bacia do Rio Descoberto e tem liderado esses esforços na Flona, que dependem do apoio da comunidade, por meio de ações voluntárias.

Além de combater as consequências dos incêndios, o movimento também busca erradicar as espécies exóticas que se proliferaram nas últimas décadas. “A ideia é substituir as árvores e plantas invasoras por espécies nativas do Cerrado, um bioma que sofreu muito com a degradação”, explica.

O projeto de restauração, que já vinha sendo planejado antes dos incêndios, ganhou urgência. “Hoje, 122 pessoas se inscreveram e conseguimos atingir a nossa meta para restauração da área de 10 mil metros quadrados”.

“A tarefa é imensa, mas com o apoio dos voluntários e de grupos organizados, acreditamos que podemos restaurar a totalidade da área afetada”. 

Assista a vídeo abaixo

Depois que o fogo foi contido na Flona, o sentimento de alívio durou pouco. Era o início de mais um desastre que moveria uma nova corrente de solidariedade: três dias depois, no dia 15 de setembro, o Parque Nacional de Brasília, que fica a 30 quilômetros da Floresta Nacional, foi tomado pelo fogo durante 5 horas. Aproximadamente 45% do maior viveiro do Centro Oeste foi afetado. Isso representou que 2,3 mil hectares de mata nativa foram queimados.

Foto: divulgação ICMbio

Quatro semanas após o incêndio de outubro, o primeiro grupo de voluntariado no parque, organizado pelo ICMBio, se uniu para o manejo e plantio de sementes nativas do Cerrado (bioma do Distrito Federal).

Vestiram um colete verde fluorescente e uma capa de união. Desta vez, cada um espalhou sementes de 7 ervas diferentes, 6 tipos de capim, uma espécie de arbusto e duas de árvores. O grupo foi dividido em áreas pré-determinadas e demarcadas para espalhar as sementes e, com as enxadas, retirar as plantas invasoras. 

Foto: Ana Clara Mendonça

Uniforme

O fogo destruiu áreas antes verdes preservadas, mas não apagou o sentimento solidário que habita no coração de Manuelle Góis, que foi uma das voluntárias logo no primeiro dia.

A agricultora de 46 anos dedica o seu tempo ao trabalho voluntário em prol da natureza. Para ela, um modo de ajudar a natureza, é nunca esperar nada em troca.

“Trabalhar com a natureza já é uma troca. Ela nos ajuda enquanto seres humanos. Fazemos o bem para ela, e ela nos traz equilíbrio, nos traz vida”.


Manuelle se voluntaria para programas do ICMbio há muito tempo. Ela, a única que não está de colete, já tem até um uniforme amarelo. 

Foto: Ayumi Watanabe e Milena Dias

O voluntariado propõe uma relação que se estende ao trabalho com a comunidade. Manuelle conta que se encontrou ao entrar na causa e conheceu pessoas que compartilham da mesma paixão e dedicação. A convivência diária com outros voluntários não é só uma experiência de trabalho.

O sentimento é de ajuda mútua e construção coletiva. “Fiz grandes amigos aqui no parque, amigos que tem o mesmo sentimento sincero e de compaixão, como o meu”.

Foto: Ana Clara Mendonça

Manuelle mora próximo ao Parque Nacional de Brasília, mais conhecido por Parque da Água Mineral.

Da janela de casa, ela conseguiu ver o fogo se espalhando na floresta que costuma frequentar. Ela expressa a dor e o sentimento de angústia em não poder fazer nada ao ver o fogo se espalhando. Emocionada, ela contou que queria ter feito alguma coisa para impedir: 

“Fiquei presa dentro de casa, sem poder ajudar. Senti o cheiro, vi o fogo. Só conseguia pensar que uma parte de mim estava sendo destruída”. 

Foi desse sentimento que surgiu a necessidade de fazer alguma coisa. “Doeu e ainda dói, vou fazer o meu possível para ajudar a recuperar o máximo de área que eu conseguir”.

Assista ao trabalho da demarcação de terreno em vídeo abaixo

Duas semanas depois, o alívio chegou com a chuva, mas não o suficiente para restaurar o que foi prejudicado. “Melhorou muito a qualidade do ar, cada gota de chuva para mim foi um sinal de que a vida estava voltando a surgir. O prejuízo foi imenso, o trabalho é grande e esse é só o começo”, disse Manuelle. 

A ideia para a atividade no parque partiu tanto de voluntários individuais quanto do interesse coletivo em colaborar com a conservação ambiental. Keiko Pellizzaro, de 48 anos, é analista ambiental e está à frente do projeto.

“É muito gratificante ver as pessoas virem aqui sem esperar nada em troca, apenas com o desejo de ajudar”. Além do trabalho de plantio, as sementes também foram doadas por pessoas e empresas voluntárias. 

Assista a vídeo

“Estamos em um mundo com muitas iniciativas e poucas terminativas. Podemos mudar isso, eu busco essa mudança todos os dias”.

Keiko fala da importância das ações de conservação e conscientização: “O que nos faz humanos é trabalhar pelo bem comum.” O mutirão de plantio foi apenas o começo do projeto de restauração. A organização planeja expandir a área de conservação e continuar mobilizando voluntários para futuras atividades.

Aqueles que tinham uma conexão com a natureza sentiram como se uma parte deles estivesse sendo queimado. Cevilla Ximenes, aos 54 anos, é uma dessas pessoas. “É muito triste, né? Ver o lugar que a gente gosta tanto assim arruinado”.

Ela sente que, de alguma forma, está deixando sua marca ao espalhar sementes pelo solo que foi devastado. “A sensação é boa. Poder contribuir um pouquinho. Olhar para o futuro, ver tudo verdinho e dizer que eu estava lá nesse processo”.

A psicóloga Kalini Gomes aos 28 anos também acredita que o voluntariado é uma maneira de alinhar sua paixão pelo meio ambiente com a vontade de ajudar. Após o grande índice de queimada, ela conta que ao participar do mutirão de reflorestamento, seria uma maneira de pensar no bem. Pensar no futuro.

Kalini Gomes esta vestida de preto. Ao lado dela, outras voluntárias.

“Não tem como não ficar comovido. É muito triste porque acaba com a vegetação que a gente tem. Acaba com o quê nos traz a vida.”

Foi a primeira vez que Kalini participava de um projeto como esse, “eu me sinto feliz que eu possa estar fazendo parte desse momento tão necessário. É sobre aprender, compartilhar e fazer a diferença”.

Foto: Ayumi Watanabe e Milena Dias

Os guardiões

Enquanto aconteciam os incêndios na Floresta Nacional de Brasília e no Parque Nacional de Brasília, uma área de preservação menos conhecida estava sendo atingida: a Reserva da Contagem, que fica na região de Sobradinho, a 24 quilômetros do centro da capital.

Quase toda a atenção das autoridades (bombeiros, polícia e o próprio ICMBio, por exemplo) estava nas florestas maiores. Mas, um grupo de brigadistas voluntários, os Guardiões da Cafuringa, conseguiu controlar o fogo e salvar parte da área de preservação.

Eles são integrantes de uma Organização da Sociedade Civil (OSC), chamada de Instituto Cafuringa. Além deles, na Reserva da Contagem, havia apenas outra brigada voluntária, e duas do Corpo de Bombeiros Militar do DF. 

Foto: divulgação Instituto Cafuringa

De acordo com a coordenadora de manejo integrado do fogo das brigadas voluntárias do Instituto Cafuringa, Caroline Camilo Dantas, não foi possível salvar toda a área porque os recursos de combate são caros e o instituto, sendo inteiro voluntário, não tem condições.

“Como a gente não tinha recursos suficiente, o nosso sentimento foi de muita tristeza. É uma área super importante pro nosso território, com nascentes importantes, com vegetação de muita relevância e o grande incêndio que aconteceu lá esse ano trouxe uma perda irreparável”. 

Ainda segundo ela, que também é vice-presidente do instituto, apesar de já esperar que o ano de 2024 fosse marcado por muitos incêndios, o preparo não foi o suficiente, apesar dos muitos esforços. Mas, ainda assim, se não fossem os brigadistas voluntários, o desastre certamente seria muito maior. 

Parte da própria existência

Emocionada, Carollina conta que o trabalho voluntário feito pelo instituto faz parte da existência dela como ser humano: “a natureza é tão generosa, tão incrível, tão maravilhosa. De uma forma inquestionavelmente tão bem estruturada e organizada, ela provê tudo que a gente precisa pra viver. Então a gente sabe que a gente tá ocupado com algo que faça realmente sentido”. 

Foto: Divulgação Instituto Cafuringa

Para ela, o número de voluntários engajados no trabalho com o meio ambiente ainda é baixo e a importância do movimento deveria ser mais divulgada pelas autoridades de governo e não governamentais. 

“Que a gente possa ser mais útil na proteção, que é essencial para a nossa importância. Nós somos responsáveis pelos quatro elementos essenciais para a vida que existem na Terra: oxigênio, água, comida e afeto”.

Apesar dos poucos adeptos, ela acredita que são nessas horas de desastres que mais pessoas se movem para o voluntariado e novas ações e instituições nascem, como foi o caso do próprio instituto. A OSC nasceu depois que Carolina e o esposo precisaram combater muitos incêndios na área rural que moravam, e, sem apoio, ele foi todo atingido pelo fogo. Apesar das marcas, seu marido sobreviveu e agora é um dos líderes da brigada voluntária. 

Foto: Ana Clara Mendonça

Emergências

De acordo com a mais recente Pesquisa Voluntariado no Brasil, feita em 2021 pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Ides) e pela Datafolha, 83% das pessoas entrevistadas acreditam que as situações emergenciais humanitárias ocorridas no Brasil influenciaram no aumento do engajamento dos brasileiros no trabalho voluntário, como é no caso das queimadas. 

Uma das respostas na pesquisa de opinião divulgada pelo Ides foi: “Toda vez que acontece um desastre a gente vê o trabalho voluntário acontecendo também, as pessoas se mobilizando para arrecadar recursos e ajudar o outro. Então nesse sentido eu vejo um crescimento”. 

Na época da divulgação do estudo, existiam 57 milhões de voluntários ativos no Brasil. A pesquisa mostra que a tendência era de que esse número crescesse nos próximos anos, especialmente pelo engajamento de voluntariado pós-pandemia. 

A especialista em gestão de voluntários e voluntariado em desastres, Mônica Exelrud Villarindo, explica que quando ocorre um desastre, normalmente demora por volta de 72 horas até as autoridades locais conseguirem dar a assistência necessária. “É muito importante ter comunidades locais treinadas e engajadas para prestar os primeiros socorros às famílias, ajudando a evacuar, organizar os abrigos, preparar alimentação e as doações”.

“Não devemos trabalhar isoladamente, temos que trabalhar em conjunto, em colaboração”.

Segundo ela, situações de desastres e emergências motivam as pessoas a se voluntariar. Foi assim que começou a se engajar com as ações. “Eu achei que tinha que trabalhar com algo que ajudasse o próximo. É isso que eu queria fazer, é isso que eu gosto de fazer.” 

Foto: Ana Clara Mendonça

“Se os voluntários não se sentirem úteis e ficarem ociosos, eles param de vir”, afirma.

No entanto, quando não há situações de emergência, o voluntariado ainda é necessário. De acordo com a especialista, os voluntários precisam de engajamento regular para não perderem o interesse nas ações. Quando não houver desastres, o ideal é ter treinamentos prévios para manter as pessoas engajadas.

“Os times treinados devem ter entendimento das funções que cada um deve assumir em caso de desastres e possíveis locais para abrigos em resposta a tragédias”.

Os voluntários que aparecem após o desastre devem ser credenciados e direcionados às funções necessárias. “É importante encorajar que grupos se formem e resolvam fazer a assistência de forma coordenada”, explica.

No caso da Flona e do Parque Nacional de Brasília, por exemplo, foram feitos formulários para reunir pessoas com habilidades específicas, como manipulação de equipamentos e ferramentas, derrubadas de árvores, além de outras funções.

Foto: Ana Clara Mendonça

Se não fosse por causa dessa organização, da iniciativa das lideranças ambientais e, principalmente das pessoas voluntárias, certamente, o estrago do fogo seria ainda maior e a recuperação das áreas verdes não teriam a vida de volta. Foi a empatia de tanta gente que tornou as cinzas em vida.

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