Filme indicado ao Oscar usa o jazz para tratar de crime que marcou Guerra Fria

trilha sonora

THALES DE MENEZES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

“Trilha Sonora para um Golpe de Estado” tem o ritmo frenético de um thriller e várias performances dos gigantes do jazz nos anos de 1950 e 1960. E o diretor belga Johan Grimonprez usa esses elementos para contar um episódio emblemático da Guerra Fria, em 1961 o assassinato de Patrice Lumumba, primeiro-ministro da então recém-emancipada República Democrática do Congo.

Como jazz e conflitos políticos internacionais se misturam? Poucos dias depois da morte de Lumumba, a cantora Abbey Lincoln e o baterista Max Roach, casados e representantes do melhor jazz da época, invadiram a sede da ONU, em Nova York, para protestar. Eram cerca de 60 invasores, alguns armados com canivetes e facas, em choque físico com os seguranças, nem um pouco preparados para um confronto desses.

“Trilha Sonora para um Golpe de Estado” termina com as imagens da invasão, mas abre com Abbey e Roach numa performance em estúdio. A partir daí, esse filme feito todo com imagens de arquivos vai seguir alternando a narração cronológica dos acontecimentos que levaram à morte de Lumumba e clipes de virtuosos do jazz.

“O filme vai e volta nessa virada de páginas entre a música e a política”, afirma Grimonprez. “Nos anos 1960, o movimento de independência dos países africanos tinha uma inspiração forte e inegável na força da mobilização pelos direitos civis nos Estados Unidos, na qual os músicos negros estavam completamente envolvidos.”

O cineasta acredita que essas idas e vindas entre o jazz e a política carregam também um balanço entre os Estados Unidos e a África. “Claro que a escolha das músicas segue uma relação com o que está sendo mostrado. Fazer um filme, até um documentário, é fazer escolhas o tempo todo. As conexões entre as duas coisas às vezes são obvias, mas às vezes não.”

Na virada para os anos 1960, muitos países africanos conseguiram sua liberdade. No primeiro ano daquela década, a ONU reconheceu 16 novas nações independentes no continente. Nesse cenário, Patrice Lumumba conduzia o então chamado Congo Belga para a emancipação. No entanto, uma característica peculiar da região atraía todas as potências do mundo para essa discussão.

Praticamente todo o urânio que os Estados Unidos usaram para produzir suas bombas atômicas, desde o pioneirismo de Oppenheimer, veio do Congo. O minério era propriedade belga, então a lista de opositores a uma independência incluía Estados Unidos, Bélgica e ONU, à época com força política para intervir.

Foi para o Congo que a ONU mandou pela primeira vez na história uma força de paz. Teoricamente, para manter a ordem e permitir as mudanças políticas que levariam Lumumba ao poder. Mas, depois de empossado, ele passou a ser um grande problema aos interesses econômicos dos envolvidos. Lumumba seria assassinado por mercenários contratados pelo governo belga, e tudo foi facilitado pela CIA e pela ONU. O filme é rico em detalhes e mostra cada passo da conspiração como um filme de suspense.

Numa história que se passou há mais de 60 anos, o trabalho de Grimonprez é um resgate para as novas gerações? “A questão do Congo é uma discussão que só se fortaleceu em tempos recentes na Bélgica. Durante anos nada era ensinado nas escolas, a história foi empurrada para debaixo do tapete.”

O diretor comenta que apenas no ano passado os dentes de ouro arrancados da boca de Lumumba foram devolvidos pelo governo belga. “A filha de Lumumba recebeu os dentes numa caixa! Bem, isso ainda não é falar sobre reparação, não?”

Grimonprez diz que, ainda menino, chegou a reter muita informação visual do período da Guerra Fria. “Eu fui uma criança nos anos 1960, então lembro de ver muita coisa na TV. Lembro bem de Nikita Khrushchev tirando os sapatos para bater com eles na mesa em protesto durante a assembleia da ONU”, conta o diretor, citando o então líder da União Soviética.

Khrushchev trabalhava politicamente contra a continuidade do envio de urânio belga aos Estados Unidos, mas sob um discurso de apoio aos movimentos africanos para o fim do colonialismo. O líder soviético é uma das estrelas do filme, com a cena do protesto batucando com os sapatos e também as imagens de seu primeiro encontro pessoal com Fidel Castro, num hotel em Nova York.

“Trilha Sonora para um Golpe de Estado” foi indicado ao Oscar de melhor documentário. Isso deve aumentar o interesse de um público mais jovem, que tem no filme a oportunidade de entender mais sobre o desenrolar da Guerra Fria e conhecer alguns monstros sagrados do jazz, como Dizzy Gillespie, Louis Armstrong, Nina Simone, Duke Ellington, John Coltrane e muitos outros que fazem uma trilha sonora dos sonhos.

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