Chile reforma Previdência da época da ditadura em vitória oportuna para Boric

MAYARA PAIXÃO
BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS)

A dez meses para as eleições no Chile, o governo de Gabriel Boric, que não navegou em águas calmas no mandato, conseguiu uma oportuna vitória ao aprovar uma histórica reforma da Previdência que modifica o sistema implementado na ditadura militar (1973-1990).

O presidente de esquerda e líder mais jovem a assumir o posto no país costurou acordos com a oposição para aprovar na quarta-feira (29) o conteúdo na Câmara, após também o Senado dar aval. O texto será revisado pelo Tribunal Constitucional e, enfim, sancionado por Boric.

Era uma demanda antiga, que governos anteriores -à esquerda e à direita- tentaram sanar e falharam. As últimas pesquisas do instituto Cadem mostram que 60% dos chilenos apoiavam a luz verde para mudar o sistema, enquanto 33% estavam contra.

A mudança mais substancial da reforma está na adoção de um sistema misto de contribuição. Pelo modelo adotado em 1981, a menos de dez anos de ter fim o regime de Augusto Pinochet, o trabalhador financiava a pensão. Agora com três pilares de contribuição, empregadores privados e estatais também passam a contribuir.

Os estudos divulgados pelo governo sugerem que 2,8 milhões de chilenos (o país tem 20 milhões de habitantes) verão o valor da aposentadoria crescer, e que os aumentos se dariam entre 14% e 35%.

Logo após a votação na Câmara, Boric apareceu em cadeia nacional de rádio e TV em um discurso de cerca de dez minutos. Disse que “esse é o caminho para uma velhice mais digna” e que a aprovação da reforma, sua bandeira desde que assumiu a Presidência, “é um ato de justiça que responde a uma das maiores dívidas que o país tinha”.

O país irá às urnas em meados de novembro, e Boric, como manda a Constituição, não pode concorrer de novo para o período seguinte. O presidente tem hoje 62% de desaprovação, segundo o Cadem. É um valor expressivo, mas menor se comparado ao de seus antecessores Michelle Bachelet e Sebastián Piñera no mesmo período do mandato.

Com exceção da reforma recém-aprovada, a administração que governou com uma ampla coalizão de esquerda e centro-esquerda não conseguiu vitórias substanciais.

Seu principal projeto, a reforma da Constituição, que no mais ajudou Boric a ser eleito, naufragou sem apoio social. A própria estratégia governista, ao apresentar uma proposta excessivamente ampla e progressista, foi vista como uma culpada parcial pelo fracasso.

Enquanto a coalizão de Boric ainda não tem um candidato claro –muitos insistem para que Bachelet, que é cotada para secretária-geral da ONU e já disse que não quer voltar à política doméstica, concorra–, a direita já tem um nome consolidado: Evelyn Matthei.

A política já foi senadora, deputada e ministra da Previdência e recentemente deixou a Prefeitura de Providência, na Grande Santiago, para concorrer à Presidência pela coalizão Chile Vamos.

Seu crescimento político drenou a força de quadros da ultradireita, como José António Kast, do Partido Republicano, que perdeu para Boric em 2021. A última pesquisa do Cadem, em dezembro, mostra Matthei na liderança da preferência presidencial espontânea, com 26 pontos, seguida por Kast (18%) e Bachelet (7%).

Ainda é cedo para calcular se a coalizão de Boric transformará a reforma das pensões em capital político nas urnas. Para aprovar a matéria com folga no Legislativo, o presidente teve apoio da base de Matthei, com exceção de poucos dissidentes mais radicais.

A ultradireita de Kast foi a força a se opor ao conteúdo. Mas mesmo a coalizão de Boric não saiu 100% satisfeita: a ala mais à esquerda do grupo queria que a reforma também tivesse eliminado as polêmicas AFPs, as administradoras privadas de pensão, o que não ocorreu.

As AFPs são responsáveis por gerir os aportes de 10% dos salários mensais feitos pelos trabalhadores para a aposentadoria, segundo o modelo definido na era Pinochet, no sistema de capitalização individual que agora chega ao fim. O setor mais progressista queria que elas dessem lugar a um seguro social universal público.

“Seguiremos lutando pelo fim das AFP e por um verdadeiro sistema de seguridade social”, disse no plenário da Câmara a deputada Emilia Schneider, a primeira parlamentar trans do Chile. “Nada termina hoje, estamos apenas começando a acabar com os negócios daqueles que apenas lucram com a velhice dos chilenos e das chilenas.”

A longevidade é um tema cada vez mais debatido no país. Hoje, na América do Sul, é o Uruguai o país com envelhecimento populacional mais avançado: idosos superam 20% da população. Mas, em 2030, mostram as projeções da ONU, o Chile se unirá a essa cifra, de modo que ambos os países serão os mais envelhecidos da região.

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