Estrangeiros relatam algemas e maus-tratos em repatriação do Brasil

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RAQUEL LOPES
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS)

Estrangeiros de diferentes nacionalidades repatriados do Brasil relataram uso de algemas para embarcar em voos de retorno aos seus países de origem, além de maus-tratos no aeroporto de Guarulhos (SP).

As declarações estão registradas em 11 relatórios da Defensoria Pública da União, produzidos de agosto a dezembro e obtidos pela Folha. Advogados que atuam nesses casos também se queixam do tratamento dispensado aos migrantes estrangeiros.

A Defensoria monitora a situação dessas pessoas desde uma alteração na normativa do Ministério da Justiça. A nova regra impede que estrangeiros em trânsito aéreo pelo Brasil, com destino a outro país, solicitem refúgio para permanecer no território nacional. Autoridades que atuam na área de migração afirmam que, cinco meses após a publicação da regra, ainda não há um protocolo de conduta para lidar com o aumento do fluxo de repatriados.

Na semana passada, um voo com brasileiros deportados dos Estados Unidos desencadeou o primeiro atrito diplomático entre os governos Lula (PT) e Trump.

Um grupo de 88 brasileiros foi embarcado num voo fretado pelo governo americano. A aeronave apresentou falhas, e os passageiros acusaram maus-tratos, inclusive com casos de agressão.

O Itamaraty disse que os brasileiros tiveram “tratamento degradante” e destacou o fato de eles terem sido algemados nos pés e nas mãos —protocolo americano que há anos é alvo de queixas feitas pela pasta.

Pela lei brasileira, pessoas repatriadas são as que tentam ingressar no país, mas são impedidas e, então, retornam à nação de origem. Esses casos aumentaram desde agosto, com a implementação das novas normas da Justiça.

Já os casos de deportação, raros no Brasil, acontecem quando uma pessoa entra ou permanece de forma irregular no território brasileiro —ela recebe uma notificação de saída e tem 60 dias para regularizar a situação.

Os relatos foram colhidos pela Defensoria Pública com pessoas de diversas nacionalidades: Vietnã, Nepal, Índia, Quênia, Paquistão, Camarões e Bangladesh. Não há informações sobre o número de pessoas repatriadas desde agosto.

De acordo com o documento, migrantes afirmaram à Defensoria Pública que há casos em que eles são levados para a aeronave algemados.

Não há nos documentos informações que deixem claro se eles retornaram a seus países algemados durante os voos ou se tiveram as algemas retiradas na hora do embarque.

Eles também contaram episódios em que teriam sido enganados ao serem levados por agentes brasileiros para participar de algum procedimento relacionado ao pedido de refúgio e, repentinamente, embarcados.

“Relataram que vários solicitantes de refúgio foram repatriados sem aviso prévio. Disseram que alguns foram levados para a aeronave de madrugada e algemados ou levados com consentimento para fora da área dos portões, mas mediante engano (como se fossem para fazer uma entrevista ou ato do processo de refúgio) e, em seguida, embarcados”, diz o relatório.

“Segundo eles, esse método da Polícia Federal para retornar os solicitantes de refúgio tem trazido insegurança e ansiedade, de modo que alguns estariam tendo medo até de dormir à noite”.

No aeroporto onde esperam a repatriação, às vezes por dias, as queixas são diversas. O espaço destinado aos que foram inadmitidos possui apenas um banheiro masculino e um feminino, que não têm chuveiro.

Há registros de adultos e menores que ficam nessa área por períodos prolongados, com um caso específico de 85 dias.

Além disso, os migrantes disseram que enfrentam condições extremamente precárias, sendo obrigados a dormir no chão e recebendo apenas uma garrafa de água por dia. A escassez de alimentos também é um problema relatado por alguns.

Também foram registrados casos de migrantes doentes, apresentando sintomas gripais, como tosse e febre, sem acesso a atendimento médico adequado.

O Ministério da Justiça afirmou, por meio de nota, que a responsabilidade pela repatriação é da companhia aérea, incluindo as despesas com custódia e cuidados prestados a partir do momento em que o passageiro for considerado inadmitido, conforme estabelecido pela Convenção de Chicago.

Já a Abear (Associação Brasileira das Empresas Aéreas) destacou que, de acordo com uma resolução da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), a necessidade de equipe de escolta para passageiros repatriados é determinada pela PF. No entanto, a associação não esclareceu o ponto sobre as despesas referentes à custódia.

A PF, por sua vez, afirmou que o uso de algemas na devolução de estrangeiros pelo Brasil não é uma regra obrigatória, mas uma medida excepcional, aplicada apenas quando a avaliação de risco indicar necessidade.

O defensor público João Chaves ressaltou que a falta de um protocolo de conduta, cinco meses após a implementação da nova política do Ministério da Justiça, é uma questão preocupante. Ele alertou que essa lacuna pode agravar ainda mais o quadro e contribuir para os maus-tratos.

“A Polícia Federal afirma que as companhias aéreas são responsáveis pelo embarque dos repatriados. Por sua vez, as companhias alegam que apenas seguem as ordens da Polícia Federal e negam o uso de força ou algemas. No entanto, os migrantes relatam o contrário, denunciando o uso de força, algemas e engano”, explicou.

A advogada de direito migratório Ellen Dias disse que é incoerente por parte do governo as reclamações sobre a deportação nos EUA tendo em vista que no Brasil também há muitos excessos, algo que não está sendo revisto pelas autoridades.

“Tenho relatos de migrantes com algemas. Os que chegam no Brasil, principalmente os africanos, não cometem crime para serem algemados. Isso é uma violação dos direitos humanos”, disse.

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