Opinião | O sonho acabou

É engraçado como a gente está sempre sonhando com alguma coisa. Se apagarmos a capacidade de acumular esperança, de imaginar o futuro, de gerar expectativa com um amanhã ainda melhor, o que restaria da vida? Deve ser por isso que todo mundo tem um sonho. É natural e desejável.

Uns querem uma casa própria, outros almejam uma viagem inesquecível, encontrar um grande amor, comprar uma bicicleta ou simplesmente pagar todos os boletos sem sofrer um infarto. Tem gente que sonha com um carro novo, um diploma, um aumento no salário ou, quem sabe, só um pouco de paz.

Se no popular o comum é ouvir que errar é humano, também deveríamos incluir o sonhar nessa mesma página do dito por aí. Sonhar é o que nos move, não é mesmo? Nietzsche dizia que “nas épocas de cultura tosca e primordial, o homem acreditava conhecer no sonho um segundo mundo real”. Os anos avançaram, e um punhado de gente anda por aí sonhando acordado, realizando pouco e sofrendo as dores de tropeçar em pesadelos. Às vezes, o sonho acaba antes mesmo de acontecer.

Em 1970, John Lennon declarou: “O sonho acabou!” O mundo sentiu o baque. Os Beatles, aqueles quatro rapazes de Liverpool que mudaram a música para sempre, tinham chegado ao fim de uma carreira histórica. Era 10 de abril, uma data que ficou marcada como o dia em que uma era se despediu. Engraçado como, assim como os sonhos, as datas também carregam significados diferentes para cada um. Para mim, por exemplo, 10 de abril sempre é lembrado como um dia de festa, de bolo e parabéns — o aniversário do meu irmão mais novo, Rafael.

Mas tem datas e sonhos que carregam mais peso do que a gente gostaria. Há sonhos que são maiores. Sabe esses que atravessam oceanos, carregando sotaques e receitas de linguiça defumada na bagagem? Aqueles que chegam com medo, mas trazem a fome de aventura, de uma nova vida junto com eles? O sonho americano, para muitos, é um desses: um ímã que puxa gente de todo canto para o tal “país das oportunidades”.

Lennon, o britânico que cantava um mundo sem fronteiras, morreu anos depois de anunciar que o sonho dos Beatles havia acabado. Curiosamente, o imigrante ilustre foi assassinado nos Estados Unidos, pelas mãos de um americano, filho de militar. A pátria da liberdade, da igualdade, do sonho americano…

O retorno de Donald Trump à presidência da América foi como colocar um palhaço assustador para perturbar a noite tranquila de quem estava sonhando em construir a vida nos Estados Unidos. É como se o homenzinho laranja tivesse colocado um cadeado no portão de chegada e, do alto, apressasse a voz para dizer: “Só entra quem nasceu aqui, e olhe lá.” Virou um sonho com porteiro, lista VIP e detector de metais.

Como disse, datas e sonhos têm interpretações diferentes para cada pessoa. Em 28 de agosto de 1963, Martin Luther King também falou sobre sonhos, em Washington D.C., diante de mais de 250 mil pessoas. Trump, ao tomar posse no último dia 20 de janeiro, feriado americano que homenageia o ativista pelos direitos civis, citou King e seu discurso histórico. O mesmo sonho, as mesmas palavras sobre “A Grande Marcha”, porém com significados completamente distintos.

Luther King discursou que, “apesar das dificuldades e frustrações do momento, eu ainda tenho um sonho…” Aquele era um sonho grande, daqueles que mudam o rumo da história. Ele acreditava que os Estados Unidos um dia seriam um país onde todos seriam iguais de verdade, não só no discurso, mas na vida.

Só que os anos passaram. E a América, aquela que foi construída por imigrantes e que sempre vendeu a ideia de um futuro brilhante para todos, hoje levanta muros. Expulsa quem ousa buscar ali o que não conseguiu em sua terra natal. A cena dos brasileiros chegando ao Brasil algemados, depois de serem agredidos e humilhados, dói. Porque ali, naquele instante, a gente vê que o sonho foi aprisionado.

O engraçado é que os mesmos que aplaudem muros na fronteira dos EUA, que atacam os patrícios humilhados e agredidos por agentes de Estado, são os que nunca tiveram coragem de sequer cruzar a linha que divide o Reino do Garcia. Você os conhece: são os que torcem o nariz para o “guri de Gaspar” que veio “roubar emprego” na Grande Velha, ou que criticam o filho do preto ou a preta nordestina que ocupam uma vaga na creche. Como se a cidade não tivesse sido feita por gente de fora. Imigrantes que sonharam em transformar essa terra no seu lar. Muitos vieram por escolha, outros chegaram acorrentados. É difícil de entender, viu?

Pois é. Sonho com o momento em que tudo será mais transparente. Hoje, os que dobram os joelhos por amor político comemoram a Oktoberfest e massacram os forasteiros e suas escolhas. As pessoas que, como cachorros servis que abanam o rabo para tudo que é feito por um líder americano, não percebem o óbvio: Blumenau só existe porque um dia um bando de imigrantes olhou para o Vale do Itajaí e disse: “Aqui vai dar certo, mesmo que a gente tenha que plantar batata.” Os caras construíram casas enxaimel com o que tinham, vieram enchentes, destruíram tudo e reconstruíram, longe de sua pátria. Hoje, porém, seus bisnetos reclamam que um haitiano “está mudando a cultura da região”.

Hipocrisia deveria dar multa. Tem gente que trata imigrante como se fosse um vírus. Esquecem que o Brasil inteiro é um laboratório de misturas e que fronteiras são uma invenção tosca, burra e limitante da humanidade.

Sonhar é humano — e impedir o sonho alheio é… bem, coisa de quem nunca sonhou direito.

Mas você sabe de uma coisa? Por mais que alguns tentem, não dá para matar todos os sonhos. Porque, enquanto nós desejamos uma vida melhor — cruzando fronteiras (mesmo que seja só a do Reino do Garcia), tocando Beatles na garagem ou simplesmente fazendo aniversário num 10 de abril qualquer —, vai ter sonho por aí.

Talvez essa seja a maior ilusão: que um dia existiu, de fato, o “sonho americano”. Ele nunca foi para todos. Nunca foi democrático. Sempre houve aqueles que podiam sonhar e aqueles que não tinham permissão. O que muda agora é que a máscara caiu. A terra da liberdade virou a terra da deportação. O sonho virou pesadelo. E, como Lennon disse, o sonho acabou.

Mas o sonho acabou mesmo? Talvez. Mas sonhos são teimosos. Eles encontram um jeito de renascer. A questão é: a gente ainda tem coragem de sonhar juntos?

Tarciso Souza, jornalista e empresário

Adicionar aos favoritos o Link permanente.