Confira as obras de García Márquez que, diz Vargas Llosa, serviram de andaimes para Cem Anos de Solidão (3ª parte)

Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

Parte 3 (e última) da resenha do livro “García Márquez — História de um Deicídio” (Record, 616 páginas, tradutora Ivone Benedetti), de Mario Vargas Llosa

A construção de uma obra-prima como “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, não acontece de forma isolada. Este romance extraordinário é o resultado de um longo processo criativo que integra elementos, temas e técnicas de outras obras que o autor foi escrevendo ao longo do tempo. A partir de suas experiências literárias anteriores, García Márquez consolidou sua narrativa única, combinando realismo mágico, complexidade humana e profundidade histórica.

Neste texto (leia mais em https://tinyurl.com/3pt4wjbu), iremos explorar algumas dessas obras que precederam “Cem Anos de Solidão” e influenciaram diretamente na consolidação de seu universo literário. Vou focar em uma seleção de títulos, tanto do próprio autor quanto de grandes escritores que moldaram sua visão e estilo. Autores como William Faulkner, Franz Kafka e James Joyce, por exemplo, deixaram marcas indeléveis no desenvolvimento de sua escrita.

Para aqueles leitores que desejam mergulhar mais fundo no universo de Gabriel García Márquez, a recomendação é clara: conhecer as obras que precedem e cercam “Cem Anos de Solidão” é um convite imperdível para compreender melhor o brilhantismo e a complexidade deste grande autor latino-americano.

Ninguém Escreve ao Coronel: ensaio para a obra magna

No livro “García Márquez: História de um Deicídio”, Mario Vargas Llosa analisa a obra de Gabriel García Márquez, abordando de maneira detalhada o processo criativo do escritor colombiano. Uma das discussões centrais do livro é a influência de obras anteriores de García Márquez, como “Ninguém Escreve ao Coronel” (uma novela, por assim dizer), na formação de seu estilo literário e na construção de “Cem Anos de Solidão”.

Vargas Llosa destaca que elementos narrativos e estruturais presentes em “Ninguém Escreve ao Coronel” foram fundamentais para o desenvolvimento do universo mágico e denso de “Cem Anos de Solidão”.

Primeiramente, Vargas Llosa aponta a recorrente utilização do tempo como elemento simbólico nas obras de García Márquez. Em “Ninguém Escreve ao Coronel”, o tempo se apresenta de maneira dilatada, quase intangível, o que influencia diretamente o tratamento do tempo em “Cem Anos de Solidão”.

Enquanto no primeiro livro o tempo é marcado pela espera angustiante do coronel pela pensão prometida, em “Cem Anos de Solidão” o tempo se entrelaça com a memória e os eventos históricos, criando uma narrativa cíclica e paradoxal, onde o passado, presente e futuro parecem coexistir ao mesmo tempo. A obsessão com a espera, também central em “Ninguém Escreve ao Coronel”, se reflete em “Cem Anos de Solidão” nas esperas intermináveis dos Buendía por algo que nunca chega, como o retorno do navegador o que, de certa forma, configura uma espera infinita.

Outro ponto importante abordado por Vargas Llosa é a questão do realismo mágico, um dos maiores legados de García Márquez à literatura mundial. Embora o realismo mágico esteja mais explicitamente desenvolvido em “Cem Anos de Solidão”, o crítico peruano observa que em “Ninguém Escreve ao Coronel” já é possível perceber a presença de elementos fantásticos, como o conceito de “o impossível que é possível”, que permeia a vida do coronel e de sua mulher. Esses elementos se tornam mais intensos em “Cem Anos de Solidão”, onde a realidade e o sobrenatural se misturam constantemente, criando uma atmosfera de irrealidade que marca a obra.

Vargas Llosa também destaca como García Márquez utiliza personagens solitários e em constante conflito com as circunstâncias externas. Em “Ninguém Escreve ao Coronel”, o oficial vive uma vida de penúria e isolamento, aguardando uma resposta do governo que nunca chega, o que reflete o tema da solidão. Esse tipo de solidão existencial é ampliado em “Cem Anos de Solidão” por meio da história da família Buendía, que, em suas várias gerações, vive em uma situação de alienação e desconexão, tanto com o mundo exterior quanto com suas próprias memórias. A solidão, portanto, não é apenas um tema, mas uma característica estrutural da obra.

Além disso, Llosa sublinha que a crítica social e política que se reflete em “Ninguém Escreve ao Coronel” também é um elemento que transita para “Cem Anos de Solidão”. A obra de García Márquez, ainda que em um plano mágico e surreal, sempre se entrelaça com as realidades sociais e políticas da América Latina. O autor usa a figura do coronel como uma metáfora da classe oprimida que, apesar de sua dignidade e luta, vive em um cenário de desigualdade e desilusão, algo que será desenvolvido de forma mais ampla na saga dos Buendía, na qual a história da família é marcada por revoluções, guerras civis e uma constante luta contra o sistema.

Portanto, Vargas Llosa, ao examinar “Ninguém Escreve ao Coronel”, revela como as sementes para “Cem Anos de Solidão” já estavam presentes nas obras mais iniciais de García Márquez. O tratamento do tempo, a fusão entre realidade e fantasia, a solidão existencial e a crítica política são temas centrais que se desdobram e se aprofundam na monumental obra do mestre colombiano, tornando a opus magna uma evolução de questões e estilos explorados desde a novela anterior.

A Revoada e Cem Anos de Solidão

Na pequena Macondo, onde o tempo insistia em ser espiralado, surgiu pela primeira vez o murmúrio do vento que carregaria consigo o destino de gerações. Foi ali, naquele rincão perdido no mapa, que a imaginação de Gabriel García Márquez começou a desenhar suas asas. E Vargas Llosa, atento a cada detalhe, capturou esse processo criativo com a precisão de quem desvenda um enigma: “História de um Deicídio” é o espelho que reflete a alquimia da criação.

Quando “A Revoada” se lançou ao mundo, o fez como um pássaro tímido, carregando em suas asas as sementes de algo maior. O livro, ainda jovem, trazia no seu cerne um universo em formação. Macondo era apenas um prenúncio, uma sombra do que viria a ser em “Cem Anos de Solidão”. Mas já estava tudo ali: o peso das memórias, a força dos silêncios, e aquele magnetismo irresistível das histórias que não querem apenas ser contadas, mas fundar um mundo próprio.

Vargas Llosa, ao dissecar o processo criativo de García Márquez, intuiu algo essencial: “A Revoada” é como o primeiro traço de um pintor que, ainda inseguro, começa a vislumbrar o contorno da obra-prima. O autor peruano via no livro inicial o embrião de um universo literário destinado a transformar a literatura, uma espécie de laboratório onde Márquez testava as ferramentas que mais tarde erigiriam a saga dos Buendía.

Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez: o romance que firmou o boom da literatura latino-americana | Foto: Jornal Opção e reprodução

O coronel, figura central de “A Revoada”, é o eco primordial de personagens que se desdobrariam em múltiplas formas em “Cem Anos de Solidão”. Ele carrega nas costas não apenas a solidão de um homem, mas a memória de uma aldeia que respira através de suas cicatrizes. Vargas Llosa percebe, com sua leitura aguçada, como García Márquez já parecia obcecado pela tarefa de narrar o inominável: o ciclo eterno da vida e da morte, a repetição infinita das mesmas dores e dos mesmos milagres.

Ler “A Revoada” é observar o momento em que o escritor ainda dialoga com suas próprias dúvidas. A linguagem, embora brilhante, ainda não alcança o tom quase bíblico que consagraria “Cem Anos de Solidão”. No entanto, a visão do mundo já está completa, mesmo que ainda embrionária. Os signos de Macondo — o calor sufocante, o realismo fantástico que brota como ervas daninhas no cotidiano, os personagens que carregam seus fardos como se fossem destinos inescapáveis — estão todos ali, prontos para voar.

E é justamente isso que Vargas Llosa destaca em sua análise: o poder criador de García Márquez é o poder de um demiurgo. Ele não apenas escreve histórias; ele constrói um universo tão tangível que o leitor não apenas imagina, mas sente o cheiro das amêndoas amargas que anunciam a morte, escuta o rufar das asas dos pássaros, e se perde no labirinto do tempo que sempre retorna ao ponto de partida.

Vargas Llosa, peruano, e García Márquez, colombiano, ganharam o Nobel de Literatura | Fotos: Reproduções

Se “A Revoada” é o voo inicial, “Cem Anos de Solidão” é o ápice desse voo, o momento em que o pássaro se torna fênix, incendiando o céu literário com suas cores. Macondo deixa de ser uma aldeia para se transformar em metáfora do mundo, e cada Buendía carrega não apenas sua própria história, mas a de todos nós.

O diálogo entre essas duas obras — “A Revoada” e “Cem Anos de Solidão” — é um diálogo entre o rascunho e o quadro final, entre o esboço e o monumento. Vargas Llosa, ao narrar o processo criativo de García Márquez, nos convida a perceber o milagre da escrita em sua forma mais pura: a capacidade de transformar o caos da vida em uma narrativa que nos atravessa e nos define.

E assim, entre as páginas desses livros, descobrimos que a literatura, como a vida, é um voo que nunca se encerra, mas que carrega em cada bater de asas a promessa do eterno.

O rompimento definitivo entre Vargas Llosa e García Márquez, ocorrido na Cidade do México, marcou profundamente a relação entre esses dois gigantes da literatura latino-americana (o colombiano teria dado uma cantada na mulher do peruano). Após esse evento, Vargas Llosa retirou de circulação sua tese “García Márquez — História de um Deicídio”. Contudo, com a morte de García Márquez, o Nobel peruano, em um gesto de generosidade, autorizou o retorno da obra ao mercado, permitindo que o público redescobrisse esse notável trabalho tão acadêmico quanto de alta percepção literária. Pode se falar que se trata de um ensaio composto de vários ensaios, com valiosos insights.

Esse gesto não apenas simboliza o reconhecimento da grandeza de García Márquez, mas também destaca a admiração que, apesar das diferenças pessoais, Vargas Llosa sempre manteve por sua obra. “García Márquez — História de um Deicídio” é mais do que uma análise literária; é uma homenagem à genialidade de um autor que redefiniu os rumos da literatura mundial.

Encerrando esta resenha, faço minhas as palavras do jornal argentino “Clarín” sobre o extraordinário trabalho doutoral de Mario Vargas Llosa: “Pode-se dizer que Vargas Llosa sabe mais sobre García Márquez do que o próprio García Márquez. É como um museu construído para abrigar uma obra de arte, em que a arquitetura do edifício se revela tão ou mais valiosa que a obra que guarda”. Bueno, bueno, bueno. É isto. (Leia a primeira parte do texto https://tinyurl.com/4pvb6pvx)

Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp e crítico literário. É autor de oito livros relacionados aos seguintes temas: energia, política, desenvolvimento regional e economia. É colaborador do Jornal Opção.

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