De frente para o espelho: mulheres questionam imposições sociais estéticas e explicam o caminho do empoderamento

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Por Ana Neves

No braço esquerdo, uma tatuagem de elefante lembra um reflexo do passado. Em frente ao espelho, Renata Marques, 37, se via com sorriso largo, mesmo tendo que ouvir palavras que a magoavam. E doíam. Ela era chamada de “elefante” durante a infância. Usava roupas longas e largas para se esconder dos disparos maldosos e mal falados.

A tatuagem de hoje foi uma forma de ressignificar a dor de outrora. “Eu sempre me achei uma mulher linda, eu sempre gostei de mim. Mas isso não significa que eu não me ofendia ou sofria com os olhares e comentários”. Embora o coração dissesse algo, não dava para ficar indiferente às rejeições. Histórias como a de Renata refletem como o processo de autoaceitação pode ser revolucionário e ir além dos padrões impostos por espelhos distorcidos da sociedade.

No caso de Renata, o ponto de partida para o início do processo foi aos 21 anos de idade. Foi quando perdeu seu tio, Denilson Marques, para a doença que ela mesma luta contra. A obesidade. Denilson morreu com 200 quilos, depois de uma bariátrica, aos 37 anos. A mesma idade que Renata, com a lembrança de uma pessoa amada na mente e os olhos alagados pela dor, hoje pode contar sua história. Uma, duas e tantas outras lágrimas derramadas de saudade acompanham-na em seu relato. “Ele tentou, ele lutou e eu acompanhei todo esse processo. Foi quando percebi que não podia deixar isso acontecer comigo também. Foi o ponto que realmente acendeu uma luz e vi que precisava levar isso mais a sério. Eu não posso fracassar. Porque eu vejo que meu tio tentou até o último minuto.”

Foi assim que, há cerca de cinco anos, em 2019, decidiu enfrentar o que mais a assombrava e apostou tudo em uma última cartada contra a obesidade. Fez a bariátrica. Mesmo com o medo a rondar. “Era o que mais me assustava. Meu tio faleceu cinco dias depois da cirurgia. Perder ele me causou isso. E meu problema hormonal era muito sério, a dieta muito puxada. Levei um ano para aceitar a bariátrica, que é uma cirurgia muito invasiva, porque eu tinha muito medo de morrer”, conta. Mas a doença não espera, não é paciente.

Entre altos e baixos, começos e recomeços. É uma série de comorbidades que a limitavam. A pré-diabete, a esteatose hepática grau 3, os problemas sérios de circulação e o derrame articular nos dois joelhos, preocupavam. “Hoje, se eu ainda estivesse obesa, talvez nem andasse mais. Eu já estava me limitando, porque a obesidade não te deixa ativa.” Foi então que o alerta surgiu. Com intervenção de seus médicos, foi orientada a se submeter à operação. E, após um ano de terapia, foram-se 75 quilos. Dos 148 kg aos 74.

Ressignificar marcas

Então, ela se fez bonita / Como há muito tempo não queria ousar / Com seu vestido decotado / Cheirando a guardado de tanto esperar

Renata se destaca por sua vivacidade. É alegre e gosta de conversar. Quando chega à loja, vestida num macacão cor de rosa, um daqueles sem alça que em outros tempos seria impensável usar, recebe as fiéis clientes com atenção. Pergunta da família e se aceita um lanche, um café. Toma o balcão e já vê quais são as demandas do dia. Hoje, se vê bonita e, como a muito tempo não ousava, veste as peças que tanto desejava. Nas roupas, vê as peças da infância e adolescência que lhes foram negadas.

Romantizar a obesidade não é uma opção. Mas, para ela, é necessário que a mulher obesa tenha valorização. “Ela também tem que entender que, mesmo obesa, é uma mulher linda, uma mulher especial. Eu sou uma mulher que também tem valores e qualidades. A gente não pode fazer com que aquela mulher se odeie”, fala. “Eu, mesmo com 148 quilos, amava publicar foto de biquíni. E bombava nas redes. Tinha gente que me elogiava, aumentava minha autoestima. Mas, ao mesmo tempo, tinha comentários muito maldosos também.”

“Eu sempre fui obesa. E continuo nessa luta. Eu falo que uma vez obesa, você é uma eterna obesa. E eu sei por experiência própria que não é fácil ser uma criança obesa. Não foi fácil ser um adolescente obesa, mas eu vou lutar e vou trazer muita gente comigo para se cuidar e lutar comigo.”


Processo

Cercada por roupas, numerações e medidas, Renata seguiu os passos dos pais e se tornou empresária do ramo da moda. Em Planaltina (DF), sua mãe, Denise Marques, criou há 36 anos a loja de roupas em que sua filha cresceu. E, nesse meio, desejar provar e usar as peças era inevitável. Mas, para Renata, o desejo vinha de mãos dadas com a frustração de não conseguir um número que a atendesse. “Não sei quantas foram as vezes que, de alguma forma, eu dormi chorando, sozinha, por causa de alguma comparação.”

Uma vez que trabalha com moda, escutava comentários que feriam. Mas fazia como podia para se esconder. Escondia-se nas mangas longas e nas roupas largas desde muito cedo. Na adolescência, por exemplo, ir ao clube era um desafio. “Eu ficava o dia inteiro com uma blusa de manga, tampada, sentada. Quando eu ia entrar na piscina, já não estava aguentando mais o calor, eu chegava na mesa mais próxima da borda, tirava rapidamente aquela roupa e pulava dentro da água para ninguém ver meu corpo. Isso porque eu tinha vergonha. Eu me escondia.”

E mesmo na fase adulta, lidou com situações que ficariam na memória. “Uma vez, quando eu ainda estava no processo para fazer a bariátrica, mas ninguém sabia, chegou uma pessoa na loja e falou bem assim para mim: ‘O que é isso?! Você está aleijada? Você está imensa!’.”

Renata estava no balcão da loja. Tinha se arrumado com a vaidade de todos os dias para o trabalho. Desde de o ocorrido, um dos lugares que mais gosta de estar é marcado pela lembrança. “De vez em quando eu ainda choro. Lembro que no dia eu perguntei para ela: ‘Você acha que eu gosto de estar assim? Eu não gosto. Eu luto contra obesidade e não estou desse jeito porque eu quero. É uma doença e estou tratando dela. Mas hoje você pode ter certeza que, quando você sair daqui, eu vou tentar trabalhar, vou tentar ficar bem. Mas à noite eu vou chorar por esse seu comentário’.”

Antes, o peso da doença era tanta que, quando chegava em casa, não tinha forças. Não conseguia dobrar nem uma coberta. “Eu não conseguia amarrar meu próprio sapato. Precisava de ajuda. E o que eu queria que as pessoas enxergassem é essa qualidade de vida que eu tenho hoje. Mas as pessoas às vezes só vêem o estético. E isso me faz rezar para Deus para que eu nunca mais volte ao estado de antes.”

Na sua trajetória, fez tratamento desde os 14 anos. Depois com 20, com 27 e então com 32. Com endócrino, psicólogo e psiquiatra. Academia, medicação e procedimentos. Chegava a perder 60 quilos. Mas sempre voltava. “Quando você engorda tudo novamente é difícil até sair de casa. Encontrar as pessoas na rua e ouvir que você engordou de novo doi. Você se sente fracassada. E aí uma pessoa ainda reforça aquele sentimento em você”, conta.

São essas algumas das cicatrizes que acompanham as estrias e a flacidez depois da cirurgia. São elas que contam a história de Renata, antes escondidas pela vergonha. Hoje, estão à mostra, mas como forma de dizer “essa sou eu”. “Hoje tenho qualidade de vida. Tenho flacidez e estria no meu corpo. E não me envergonho da minha história. Eu tenho orgulho.”

Pensando nisso, ela um dia decidiu revisitar sua infância. Com ela, falácias tamanhas de dor. A “elefante”. O apelido, antes um embargo, uma marca deixada na doçura de ser criança, se torna um mantra. “Eu sou apaixonada por elefante, minha casa tem quadros e quadros de elefante. Até que um dia eu fui olhar para um. ‘Mas espera aí. O elefante, ele é tão bonito. É um animal que representa tanta coisa boa’,disse. Então hoje eu tenho tatuado o elefante justamente por ter sido uma das coisas que eu mais escutei na minha infância.”

Após a cirurgia, adotou hábitos saudáveis. Ter amor próprio. Ter qualidade de vida é o que a deixa mais satisfeita. “Hoje eu jogo beach tennis. E eu amo, sou apaixonada por esse esporte. O lugar que eu mais me sinto bem é com a raquete na areia.” Além do esporte, que nunca sequer se imaginava praticando, também inclui a musculação no dia a dia, vai a cachoeiras e trilhas. Mantém a vida ativa.“Eu sempre falo: ‘Cara, que bom. Eu tô aqui, eu tô me cuidando.’ Hoje eu estou com saúde. Faço meus exames e vejo minhas taxas excelentes. No final, padrão não é o que te mantém viva.”

Esse processo a fez entender que não é preciso estar dentro de um padrão. É preciso estar bem. “Eu não sou uma mulher padrão. Eu vou não sou uma mulherzinha pequena que veste 36 ou 38. Nunca fui e nem vou ser porque não é do meu biotipo. Eu sou grandona. Eu visto 42 e estou super feliz com isso porque eu tô saudável. É isso que eu queria que as pessoas enxergassem”

A empresária, com menos 75 quilos, hoje pratica esportes, como o beach tênis. E, no braço esquerdo, a tatuagem ressignificada. Crédito: arquivo pessoal


Embora a perda do peso, os comentários permanecem. O mais frequente é o sobre a flacidez da pele, que ganhou após os muitos quilos perdidos. “Sempre escuto: ‘você vai fazer a reparadora quando? Quando você vai fazer plástica?’ E eu falo que vai ser quando eu sentir necessidade. Quando eu quiser.”

“As pessoas têm essa preocupação com o corpo alheio, de impor um padrão. Você tem que fazer de tudo para poder se enquadrar dentro daquele mundinho. E você tem que entender essa individualidade. Cada pessoa tem um organismo. Cada pessoa tem seu corpo e cada pessoa reage de uma forma.”



O que é o padrão?

Está na cor do cabelo, cor do batom, na altura, tamanho e estatura. Na magreza, na costura e na largura. É o fetiche por aquilo que não se tem, que quase sempre não precisa ter, mas quer ter. O padrão está não só no corpo físico, mas também no que é utilizado como acessório, como sinal de acrítico. Tudo se modifica ao passo que vai se conquistando a facilidade com aquilo. Essa é a grande sagacidade do padrão.

Ele é introjetado e imposto no Brasil, se instaura de forma coercitiva e refletida. É aprendido pelos poros. Está nos recados que se recebe a vida inteira pela mídia, nos livros didáticos, nas imagens e de quem está no poder ou em um lugar de conforto e prestígio.

É assim que se torna um padrão. Torna-se uma cultura. “No Brasil esse padrão é construído com aspectos raciais e sociais do que a gente pensa de beleza e de forma dos corpos. Porque o Brasil além de racista é racionalizado. O que é naturalmente bonito, aceito e belo, vem de um processo de receber esses recados empregados do que é racialmente dito. Vem de um estigma sobre as maiorias minorizadas”, explica a antropóloga e ouvidora geral da Defensoria Pública da Bahia, Naira Gomes.

O padrão, como explica a antropóloga, é para ser um diferencial. Um privilégio para poucos. Quando chega em uma massa, que alcança o inalcançável, ele tem que ser mudado para voltar a ser o que é. “O padrão é para ser perseguido, não para ser alcançado. Isso é uma caixa que tem que caber poucas pessoas. Para continuar padrão, como condição de existência, não pode ser alcançado”, diz. Logo, ao se aproximar dele, ele muda. Se escamoteia, se metamorfoseia para gerar uma nova cobiça. “Porque o padrão é para ser cobiçado. A gente se sacrifica e se molda. Inclusive se nega para se aproximar de um padrão. Se você consegue alcançar, para de ser paradigma, algo perseguido”, conclui.

Vigilância constante

Da infância à velhice, vigilância constante. Vigilância sobre corpos especificamente femininos. Imposições de como andar, sentar, agir e falar. É um corpo vigiado para caber dentro do padrão que instituíram que é ser mulher. E esse padrão, como explica a antropóloga Naira Gomes, parte de um único ser. O homem. Aquele que historicamente conquistou poder suficiente para estabelecer quem e como mulheres devem ser. São os “consumidores”. “Sem consumidor não há mercado. Se não fosse uma verdade, uma métrica para os homens, as mulheres não se sentiriam tão vigilantes e impelidas a se adequar a um padrão.”

Tudo parte de uma construção social. Tão Introjetada na cultura brasileira que condiciona mulheres a viverem assim. Alheia a quem realmente é de fato. Se condiciona a viver na exterioridade estrangeira a ela mesma. E para se comprovar real não é preciso ir muito longe. “Quantas vezes dentro da própria família da gente podemos ouvir comentários de pai, irmão, marido ou namorado, sobre como você está gorda e que ninguém vai te querer assim?”, questiona Naira. Mulheres, como explica, são objetos sexuais para os homens. Não um ser funcional e racional, mas um objeto. “Somos vistas, independentemente da cor ou etnia, como um pedaço de carne. E uso essa expressão porque foi assim que eu mesma me vi por muito tempo”, conta ela como mulher e antropóloga.

Naira, uma mulher negra, nascida e criada em Salvador (BA), filha de um barbeiro e de uma merendeira, habita um o lugar perverso onde são colocadas duas das mais cruéis opressões/cobranças: o machismo e o racismo. “Eu tô transformando esse conceito em mim ainda. Porque foi muito pesado para minha vida inteira carregar esse estigma. Eu sempre fui uma mulher muito grande na altura e grande no volume. Então a vida inteira eu escutei sobre o tamanho da minha bunda, da minha boca. E eu sentia que ela chegava antes de mim e valia mais do que eu. Então doeu muito a vida quase inteira. A pouco tempo que eu tô ressignificando isso”, relata.

As barreiras para as mulheres são muitas e sem distinção existencialista. Entre elas, perpassa uma dor que parece demais e que dessa dor pode se construir revoluções. “É importante entender isso porque, entre mulheres brancas e pretas, de um etnia para outra, são lugares distintos mas são dores que se assemelham. Se distinguem em diferentes contextos, mas que desse lugar em comum é possível construir estratégias coletivas. É possível construir estratégias para derrubar o padrão. A capacidade de construir uma rede de apoio na diversidade como um valor real. Um valor de potência e valor de construção”, expõe.

A antropóloga Naira sente na pela as cobranças do padrão estético. Crédito: arquivo pessoal


É histórico

Vem da narrativa de quem venceu, de quem tem a possibilidade de escrever a própria versão da história. “Por isso vem da Europa e não da África, por exemplo. Por isso vêm de povos brancos e não negros. Por isso vem daquele que conta a história sobre ciências, sobre conquista de territórios e não daqueles que foram violados. Vem deste lugar que, infelizmente, mundialmente tem a ver com a história de tantos povos negros.” A construção de um padrão, no Brasil e no mundo, tem a ver com a narrativa da capacidade de um povo submeter o outro a algum tipo de opressão. Isso inclui a pressão estética.

Até mesmo na história recente da escravização há referências bibliográficas que demonstram o que os povos, trazidos para serem escravizados, tinham critérios estéticos para serem escolhidos e designados para onde iam. “As mulheres mais esguias, mais magras, vinham com a intenção de serem para casa grande, para servir sexualmente e também como uma peça de adorno dentro da casa. E pessoas mais corpulentas, mais fortes e mais retintas, iam para a lavoura”, fala Naira, que ainda explica que, depois que houve a mistura de etnias de indígenas, com negros, brancos, europeus etc, as pessoas eram escalonadas a partir do tom da pele e do tipo de cabelo para ficar dentro ou fora da casa do senhorio.

Exemplos como esses demonstram como a estética é diretamente ligada a capacidade de subjugar povos. De quem tem poder simbólico para impor um padrão. “Os povos potencializados não tiveram a capacidade política de acumular poder ao ponto de impor uma estética. Então a gente percebe, no Brasil, que a beleza está ligada a branquitude, a brancura, a branqueza, a claridade da pele e a textura do cabelo. Isso porque a gente tem uma referência dessa população que conseguiu acumular poder, acumular capital político, de poder impor e de escrever a sua história no livro didático que está presente nas escolas e que vemos desde crianças.”

Resgate

Elizabeth Adriana Oliveira, 36, foi mais uma que ressignificou as marcas deixadas pela perda de uma pessoa amada. Mas para ela, a marca veio como uma outra doença. O vitiligo. Manchas que no seu cotidiano causam espanto. Um olhar, um comentário. “As pessoas olham, apontam. Umas até pensam que, se encostarem em mim, podem pegar. Acham que é contagioso.” O curioso caso do preconceito. O ar de julgamento e ignorância. Evidências que marcam Elizabeth mais do que o próprio vitiligo. Mas, como um resgate, veio a profissão de modelo. Resgate para aquilo com que se sentia aprisionada. Uma prisioneira dentro da própria pele.

Em 2020, na busca pela inclusão, aceitação e reconhecimento, buscou uma agência para iniciar carreira. A então servidora pública tinha o intuito de ser modelo plus size, pois estava acima do peso. Mas foi quando notaram a condição do vitiligo que tudo mudou. A convidaram para posar com as manchas em destaque, aquilo que a mais diferenciava. Uma diferença que, no início de uma dor, refletia como o diferente era taxado como ruim. “Aquele não era meu intuito, não era a mancha. Eu imaginei que poderia fazer uma maquiagem em cima para tampar e foi realmente o contrário.” Então abriu-se um leque. Um novo caminho para minha vida que antes não conseguia enxergar com bons olhos.

Foi aí que a chave virou. Devagar, claro. Mas aconteceu.

Elizabeth, a modelo marcada pela diferença. Uma diferença que hoje a faz uma profissional. Crédito: Agência Scouting



Aceitações

As primeiras manchas vieram após o luto, em 2014, com o falecimento da avó. A perda de uma pessoa amada e admirada, que deixou mais de um tipo de marca em sua vida. “Fisicamente as pessoas vão embora, mas ainda fica a história, o legado, que elas deixam. Então, quando ela foi embora, quando eu não a via mais fisicamente, aí apareceu uma manchinha na minha mão.”

O diagnóstico era clínico, foi preciso. De imediato a médica já sabia que se tratava de vitiligo. No início, nenhuma chance de amizade com a doença. “Comecei a chorar. Preferia que tirassem minha mão. Sempre me cuidei e não queria que isso mudasse toda a minha aparência”, conta Elizabeth.

Depois, veio o entendimento. Trata-se de uma doença autoimune, de origem genética, que pode acometer a qualquer pessoa. Pode ocorrer por questões hereditárias ou emocionais. “Não doi, não arde, se eu encostar em alguém não vai passar. Mas assim como eu não tinha esse conhecimento, outras pessoas também não tem.” A compreensão foi necessária para entender que não se encaixava mais no padrão que enxerga no mundo. Assim como também entender que as pessoas comentam, julgam e apontam. E que isso viria a doer por um tempo.

A mesma manchinha da mão foi se estendendo. Foi para o cotovelo, antebraços. Pés e joelhos. “A única coisa que eu pensava era: ‘Vou ficar toda manchada. Eu vou ficar de cores e é isso que vai chamar atenção. Nada do que eu sou, nada do que eu fizer, vai chamar mais atenção do que essas manchas.’ E eu não sou só as manchas. Mas no início eu me sentia feia”, relembra o momento do impacto. A insegurança apareceu. Começou a cobrir-se como podia.

“Eu já comecei a usar roupa de manga. Quando as pessoas começavam a reparar nas minhas mãos eu escondia, colocava para trás. Disfarçava para elas não olharem pra mim. E aí depois eu percebi que o preconceito tinha começado e estava aqui dentro, enraizado.”

A preocupação com a aparência também se estendeu. Foram-se anos de tratamento e acompanhamento psicológico para que a aceitação viesse. E, nesse processo, veio outro sentimento. Não se encaixar em um padrão que vê a sua volta. “Eu me sinto despadronizada. Não estou dentro do padrão. E quando eu comecei, quando eu vi que tinha um biotipo diferente, comecei a buscar saúde.” Começou então a ver o lado da saúde. Com alimentação saudável e atividade física, viu seu corpo mudar. Perdeu os 10 quilos que tanto a incomodavam, sentiu a oxigenação da vida ativa. Porém as manchas foram aparecendo ainda mais. “Eu não me enquadro em nenhum padrão. E agora com o vitiligo, menos ainda. E tudo bem por isso. Hoje eu sou bem comigo mesma.”

Mas, ainda assim, Elizabeth trilha um caminho por vezes doloroso. Ainda tropeça quando anda pelo shopping e percebe os olhares. Sua vontade é perguntar: o que, em mim, que te incomoda? O olhar preconceituoso machuca.


“Isso abala. Muito. Ali eu me sinto realmente à margem daqueles que tem uma cor. Porque tem o branco e tem o negro, mas e aquela que tem duas cores? Por que às vezes a criança pergunta aos seus pais: “Mamãe, olha, viu?” Eu vejo que é de uma maneira inocente. Mas muitos adultos não. E é só para mostrar mesmo a diferença. Então nesse caminho eu estou sendo construída.”

As marcas não são mais um pesar ou azar. Como antes não ousava, se vê bonita. Crédito: Agência Scouting


E esse processo da aceitação, é o mais complicado e complexo. A situação pode ser vista como comodismo, conformismo. É o que explica a psicóloga clínica, Juliana Soares. “Essa percepção acontece principalmente pela pressão estética no Brasil. Estar conformada com seu corpo é porque tem ‘algo a melhorar’. Essa é a lógica disso”, explica. “Acho que você pode fazer outra coisa. Acho que você por um preenchimento. Acho que você pode fazer um botox. Acho que você pode abaixar a sobrancelha. Agora levanta a sobrancelha. Faz um implante. Acaba que você tem que estar sempre fazendo alguma coisa, você tem que estar mudando.”

É nesse momento que nos deparamos com a subjetividade. A aceitação implica naquilo que é o melhor para cada um. “O que é bom para você pode não ser bom para mim. Então a forma como me vejo, onde temos a questão da autoestima, influencia muito na autoaceitação. Mas a partir do momento em que eu me incomodar, eu vou mudar. Mas isso não porque alguém me falou ou vi na internet. Eu vou fazer porque eu quero e gosto. Porque vai me fazer bem. Esse é o pensamento.

Transtornos

A preocupação excessiva com os padrões de beleza, nas quais há uma “divinização” do corpo belo, podem contribuir para o aumento da insatisfação com a imagem corporal. Esse fato pode ocasionar problemas como o Transtorno Dismórfico Corporal. Trata-se de uma doença mental, onde o paciente apresenta foco obsessivo por um “defeito”, pequeno ou imaginado, que considera ter na própria aparência. Podendo passar 6 ou 8 horas do dia pensando nisso.

“É uma preocupação excessiva. E traz muito sofrimento e prejuízo para a vida da pessoa. É como se a pessoa se sentisse deformada por algo do corpo”, explica a psicóloga Juliana Soares.

É como se a pessoa se sentisse inadequada. “Por exemplo, se a pessoa tem acne no rosto, ela se sente monstruosa por conta disso. Ela se sente um monstro.” Isso pode acontecer da mesma forma com outros aspectos da aparência. É quando a pessoa preocupa-se com o pensamento de que algo está errado com ela e ela não consegue sair desse estado. “E isso é um pensamento intrusivo e obsessivo, porque ela não consegue sair daquilo.” Para se configurar transtorno precisa ocasionar sofrimento, prejuízo e ter frequência intensa, como explica Juliana. Por isso, apenas sintomas similares podem não se tratar do transtorno.

O quadro médico pode e deve ser diagnosticado por profissionais da saúde, tanto psicólogo quanto psiquiatra. São eles que estão aptos para analisar uma série de critérios que vão determinar se uma pessoa apresenta ou não a doença. “Para esse diagnóstico, usamos a terapia cognitiva comportamental (TCC). A premissa da terapia é que a forma como a gente interpreta as situações aqui nos traz sofrimento. Então a forma como eu vejo meu corpo que é distorcido vai me trazer um sofrimento gigantesco. A TCC atua na reestruturação dos pensamentos que consequentemente vai mudar a forma como eu me sinto com o meu corpo e, também, a forma como eu vou me comportar ou agir com o meu corpo.”

Esse transtorno é tão perigoso, que os prejuízos podem ser permanentes devido a excessiva preocupação com a aparência. “A pessoa fica tentando amenizar, compensar esse ‘defeito’, então vive de maquiagem, não sai de casa porque não podem ver assim ou recorrem aos procedimentos estéticos.” E esse é um fato que desencadeia uma outra problemática: as cirurgias plásticas.

Segundo a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), em 2020, foram registradas 1.306.962 intervenções cirúrgicas estéticas no Brasil, que fica atrás somente dos Estados Unidos no ranking mundial. Sendo a lipoaspiração a mais comum entre as mulheres. Além disso, no mesmo ano, foi comprovado que o Brasil é o país que mais faz rinoplastias no mundo, com 87.879 operações realizadas em 2020, seguido por Turquia, com 66.950, e Estados Unidos, com 55.436.

Essa busca por procedimentos estéticos para alcançar, a qualquer custo, a perfeição reforça o padrão de beleza que é imposto, principalmente para mulheres. “É como se as pessoas com esse transtorno usassem uma lupa para ficarem encontrando defeitos naquela deformidade e acaba trazendo muito prejuízo e muito mais para as mulheres.”

Pressão

Um dos fatores que contribuem para o surgimento desse transtorno, segundo a psicóloga, é a pressão estética estabelecida. Isso porque um dos componentes para se diagnosticar um transtorno é a questão do ambiente externo. “A pressão estética, no sentido de ter o corpo perfeito, sempre existiu e propriamente infelizmente sempre vai ter. Mas a grande questão é que a perfeição não existe. O que é perfeito para mim é diferente do perfeito para você. Então a sociedade como um todo coloca um padrão de corpo específico. E uma pessoa com esse tal corpo pode não estar satisfeita com o corpo dela. Ela tá buscando sempre melhorar. Porque ela também está inserida nessa pressão estética”, revela a psicóloga.

Se o indivíduo tiver a visão distorcida do corpo, não serão 20 quilos que trarão a aceitação. Vai continuar na árdua jornada da insatisfação justamente por essa projeção de estar perfeito. E chegar nesse padrão é uma coisa que afeta mais mulheres do que homens em disparado. “Essa pressão a qualquer custo é diferente para as mulheres. Elas se submetem a procedimentos e cirurgias absurdas, até mesmo com profissionais desqualificados e acabam morrendo na mesa de cirurgia.”

Isso não significa que homens não possam sofrer com algum tipo de pressão estética. “Os homens sofrem a pressão pela questão de musculatura e força. Para se provarem ‘homens de verdade’.” Já com as mulheres, a questão é perfeição.

Em tempos de redes sociais

Aos celulares na palma da mão, sempre disponíveis para ver a perfeição, é compartilhado não só o corpo dito como ideal. Mas junto vem a pressão. Com o mundo inteiro a um palmo de distância. E o consumo desse conteúdo, onde tudo é aparentemente perfeito, funciona com uma cela. Para aprisionar em recortes da realidade. E o companheiro de cela é a comparação, a vilã que mina a autoestima e confiança. “Chega momento que não dá, é muita coisa na internet, muito hater e chega uma hora que ninguém tem cabeça para isso. Tem vezes que eu consigo não me comparar, mas as vezes não tem como. E aí eu sei que é hora de sair um pouco das redes”, conta a modelo Bia Malva, de 20 anos, sobre como é viver em um mundo dominado pelas redes. Redes que funcionam como um espelho, refletindo apenas o que os outros querem projetar.

Nas redes, a linha entra a comparação e a inspiração é tênue. É frágil e intangível. E encontrar o equilíbrio entre ambos é árduo. E tem piora com a presença das redes sociais. “Seguir tal pessoa porque ela vai te inspirar é complexo. Porque se a pessoa não tiver a mente fortalecida, com os pés na realidade, ela vai mais para comparação do que para inspiração”, explica a psicóloga Juliana Soares. É preciso se atentar às variáveis e entender a individualidade para que a comparação passe a ser inspiração. “Se atente a tornar aquilo que traz para minha realidade, porque aí sim vai ser possível, vai ser alcançado porque eu já dentro da minha realidade.”

Bia modela desde os 14 anos para o mercado plus size. Apesar de comparações ou predileções do meio, ressignifica o padrão. Crédito: Agência Scouting


Bia é modelo plus size há oito anos. Começou no ramo aos 14 anos, quando sua madrasta abriu uma agência de modelo. Quando entrou, demorou um tempo para pegar trabalho. Quando postava nas redes o seu trabalho, o espanto vinha. “O povo ficava doido. ‘Como assim você é modelo?’.”

O mercado para modelos plus size é mais difícil e fechado do que o convencional, com modelos magras. Bia conta sobre a diferença maior, tanto no próprio trabalho quanto no dia a dia. “Hoje em dia o mercado plus size não é tão grande e aberto que nem o outro. Então a gente sofre muito com isso, porque nem sempre a gente é escolhido. A gente pode até ir para o casting, que é tipo uma seleção. Mas no final não vai ser escolhida porque o perfil que o cliente queria era outro”, explica.

Hoje afirma ser bem resolvida com o próprio corpo. Apesar disso, conta que já sofreu para se encaixar em padrões que via na internet, sendo vítima de comentários até dentro de casa. “Meu pai até hoje fala: ‘Se você não emagrecer ninguém vai gostar de você. É por isso que você nunca namorou até hoje”, conta. Com as redes não é diferente. “No nosso dia a dia a gente vê muita coisa, principalmente nas redes sociais, e acaba sendo influenciada. Começa a pensar coisas como: ‘Aí, se eu não for magra ninguém vai gostar de mim’. Todos os dias da nossa vida a gente está passando por isso. Então a gente sofre muito com isso hoje em dia, inclusive eu”.

Resolvida

Ser bem resolvida com o próprio corpo não foi um processo fácil. É demorado, difícil e dolorido. Até hoje não é fácil. “Não é 100% do tempo que a gente está segura com o nosso corpo. Então, a gente sempre olha ao nosso redor, às vezes se incomoda e quer mudar. Mas não é assim. A gente tem que estar bem com o nosso corpo. E se a gente se incomoda com alguma coisa, não podemos mudar drasticamente porque os outros querem, mas sim porque a gente quer.”

A modelo, desde pequena, foi acima do peso. Cresceu com as idas ao nutricionista. Dietas e rotinas saudáveis. Mas sem resultados esperados. A magreza não vinha. E a comparação também. “Nem todo mundo é acima do peso. E hoje ainda tem muito preconceito com pessoas gordas, que fogem da magreza.” Não foi e continua não sendo fácil lidar constantemente com o julgamento. Chega um momento em que as brigas e batalhas são escolhidas em prol da saúde mental.

“Tem coisa que dá para brigar. Tem certas coisas, situações, que não dá para brigar. Não vale o cansaço emocional. A gente só deixa de lado. Mas quando é preciso falar, quando eu não aguento mais, eu falo. Porque se não se a gente não falar, não vai mudar.”

Mas, hoje, em frente ao reflexo da mulher que se encontrou na profissão de se amar, diz as palavras que gostaria de ter escutado quando era adolescente. “Vai ficar tudo bem. As pessoas tem que gostar de você do jeito que você é. Você vai aprender a melhorar suas qualidades e se aceitar desse jeito porque você é assim. E se por acaso um dia você não gostar, pode mudar. Porque tudo pode ser mudado na vida. Mas isso tem que vir de uma vontade sua e não de um outro alguém. Se for mudar, mude por você.” Através do espelho, olha para a menina que tanto precisava ser acolhida.

A modelo, apesar das imposições, não se rende. Com seu vestido colado, decotado, se ilumina no aconchego de ser quem é. Crédito: Agência Scouting

Sob supervisão dos professores Luiz Claudio Ferreira e Gilberto Costa

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