Há 60 anos, Nelson Maleiro incendiava o Carnaval de Salvador

A noite de 28 de fevereiro de 1965, um domingo de Carnaval, deve ter ficado mais iluminada quando o dragão projetado por Nelson Maleiro (1909-1982) invadiu a avenida botando fogo pela boca. O fundador dos blocos Mercadores de Bagdá e Cavalheiros de Bagdá era conhecido por produzir carros alegóricos e elementos cênicos arrojados, entre tantos outros talentos que possuía, como a arte da fabricação de instrumentos. O dragão era a atração principal e desfilava lado a lado do Gigante do Bagdá, personagem encarnado pelo próprio Maleiro, que, de armadura peitoral e sapatos de bico afinado, pisava num dispositivo que produzia as chamas. Fixada no alto do carro, uma faixa avisava: “Só o Gigante dará fim nesta fera”.

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Naqueles tempos, marcados pelo declínio das tradicionais sociedades carnavalescas e pela ascensão do trio elétrico, o carnaval alegórico vivia seus últimos dias. Um período de riqueza e efervescência cultural que tinha em Maleiro um dos seus principais e mais completos personagens. Apesar dos recursos financeiros, comum a uma agremiação negra dos anos 1950/60, os Mercadores e os Cavalheiros exibiam beleza e brilho. Os desfiles eram inspirados na representação do Oriente que se via no cinema: tendas árabes, camelos, tapetes voadores, lâmpadas mágicas. Era preciso chamar atenção do público, da imprensa e do corpo de jurados do concurso organizado pela Prefeitura, em busca do disputado título de campeão do Carnaval. Os Cavalheiros e seu dragão incendiário concorriam na categoria “Pequenos Clubes”. Em 1963, o escritor Jorge Amado, o escultor Mário Cravo Júnior e o artista plástico Caribé estavam entre os jurados, como registrou o Diário de Notícias em 20 de fevereiro daquele ano. Pois bem. Voltando à noite de 1965, o espetáculo de luz e cor teve o ápice por volta das 19h30, quando o fogo se voltou contra o próprio carro alegórico, consumido pelas chamas, próximo, por ironia, ao Quartel dos Bombeiros, na Barroquinha. O jornal A Tarde registrou o incidente com uma nota na capa da edição de segunda-feira, 1º de março de 1965. “O carro incendiado foi a atração do desfile. O incêndio foi iniciado quando o próprio presidente do clube acendia um dispositivo, que faria sair chamas da bôca do animal armado sôbre o carro. O forte vento que soprava, propalou o fogo, que rapidamente destruiu tôda a armação do carro alegórico, sendo facilitado pelo material do carro, todo ele de palha sêca e madeira”, dizia o texto. Apesar do susto, Maleiro renovou a criatividade. Ele colocou uma nova faixa no carro destruído pelo fogo: “Os maus por si só se destroem”. E os Cavalheiros retornaram à avenida no dia seguinte. Mas o incêndio pode ter impedido os Cavalheiros de levantar a taça. O bloco ficou com o segundo lugar, como noticiou o Diário de Notícias, em 4 de março de 1965. Curiosamente, como atestam registros fotográficos, Maleiro exibia uma placa na porta do seu ateliê, na Barroquinha, com a inscrição: “Cavalheiros de Bagdá – Campeão de 62, 63, 64 e 65”. 60 anos depois, pouco importa quem venceu o campeonato. Mas a frase “Os maus por si só se destroem” continua a fazer muito sentido. Pode ser interpretada como uma crítica à elite soteropolitana? Uma referência à exploração do povo negro? Maleiro continua atual, apesar de a narrativa oficial da festa ofuscar a sua real importância.E é preciso lembrar que ele realmente incendiou o Carnaval com seus múltiplos talentos. Contribuiu com produções do Gandhy aos Internacionais, influenciou a percussão na Bahia, reconfigurou o tradicional “carnaval negro” com seu mergulho obstinado no orientalismo e o Gigante de Bagdá, esse herói mestiço, negro/árabe, que enfrentava dragões e a opressão.Dante Nascimento, jornalista e doutorando em Cultura e Sociedade/UFBA*

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