“Só conservamos aquilo que conhecemos”, diz pesquisadora que mapeou às ameaças ao Pica-pau-da-taboca, espécie única do Cerrado

A aridez sazonal do Cerrado molda um cenário de contrastes, onde o fogo encontra terreno fértil e a biodiversidade revela um mosaico de adaptações únicas. É nesse ambiente, de veredas, campos e matas de galeria, que um pequeno pássaro de hábitos discretos e habitat específico enfrenta uma batalha silenciosa contra a extinção. O Celeus obrieni, conhecido como Pica-pau-da-taboca, é a única espécie de pica-pau endêmica do Brasil e exclusiva do Cerrado, não existindo em nenhum outro lugar do planeta. 

Hoje, essa espécie, que depende de um ambiente restrito e enfrenta ameaças como incêndios e desmatamento, é o foco de uma pesquisa de doutorado que une rigor técnico e sensibilidade social, e cujo impacto reverbera não apenas no meio acadêmico, mas também nas comunidades tradicionais que guardam os saberes do bioma.

A pesquisadora goiana Letícia Martins Rabelo, doutoranda de 31 anos na Universidade Federal de Goiás (UFG), investiga o risco de extinção do pica-pau-da-taboca, e tem se dedicado à análise desse delicado cenário. Em entrevista ao Jornal Opção, Letícia conta que sua pesquisa, que começou com um interesse por aves ameaçadas e se aprofundou durante a pandemia de Covid-19, utiliza métodos avançados de modelagem para entender a distribuição e as ameaças ao pica-pau-da-taboca. 

Letícia Martins Rabelo | Foto: Guilherme Alves/ Jornal Opção

 Classificado como Vulnerável (VU) pelo ICMBio, o Celeus obrieni tem uma história marcada por décadas de mistério. Descoberto em 1926, nas margens do Rio Parnaíba, em Uruçuí (PI), ele foi inicialmente chamado de Pica-pau-do-Parnaíba. No entanto, após seu primeiro registro, a espécie desapareceu por 80 anos, só sendo redocumentada em 2006, no município de Goiatins, no Tocantins. Devido à sua associação com os tabocais, um tipo de bambu do gênero Guadua, o nome popular foi atualizado para Pica-pau-da-taboca.

O cerne da pesquisa de Letícia é o uso de modelos de distribuição de espécies, uma ferramenta que combina dados de ocorrência do animal com variáveis climáticas e ambientais para prever onde ele pode viver. “A gente coleta pontos de ocorrência da espécie em plataformas online, como o WikiAves e o eBird, e cruza com variáveis como temperatura, umidade e tipo de vegetação”, explica.

Parentesco ecológico e distribuição geográfica

O primeiro capítulo da tese de Letícia focou em entender como espécies do mesmo gênero, com características morfológicas e ecológicas semelhantes, respondem às variáveis climáticas. “Avaliamos as 12 espécies do gênero Celeus e descobrimos que, embora sejam parentes próximas, elas têm distribuições geográficas distintas, associadas a diferentes biomas, como Amazônia, Mata Atlântica e Cerrado”, explica.

A pesquisa mostrou que algumas espécies são generalistas, capazes de se adaptar a uma variedade de ambientes, enquanto outras, como o Celeus obrieni, são especialistas. “Essas espécies restritas, ou habitat especialistas, dependem de condições ambientais muito específicas. No caso do Celeus obrieni, ele precisa de tabocais, que são ambientes florestais próximos a rios ou em campos de altitude”, detalha Letícia. Essa dependência de um habitat restrito torna a espécie vulnerável a qualquer alteração no ambiente.

Dados dos locais em que o Celeus obrieni está presente | Foto: Guilherme Alves/ Jornal Opção

Além disso, o Pica-pau-da-taboca tem uma dieta especializada, alimentando-se principalmente de formigas que vivem nos tabocais. “Essa restrição alimentar e de habitat faz com que ele seja ainda mais sensível a mudanças ambientais”, afirma Letícia. A combinação de fatores como desmatamento, queimadas e mudanças climáticas coloca a espécie em risco. “Se tem uma queimada ali, aquele ambiente vai precisar de pelo menos 3, 4 anos para se recuperar. E o Celeus obrieni não consegue sobreviver em um ambiente assim todos os anos”, alerta.

Um dos maiores desafios para a conservação do Celeus obrieni é a alta incidência de incêndios no Cerrado, bioma que já perdeu mais de 50% de sua vegetação original. “A região norte do Cerrado, que é justamente onde o Celeus obrieni ocorre com mais frequência, é a que mais pega fogo”, destaca Letícia.

Índice de queimadas na região norte | Foto: Guilherme Alves/ Jornal Opção

Os incêndios, muitas vezes causados por atividades humanas, são agravados pelas mudanças climáticas, que tornam o clima mais quente e seco. “O período de seca no Cerrado é o mais perigoso. É quando os incêndios são mais intensos e devastadores”, explica. A perda de habitat e a fragmentação das áreas de Cerrado têm comprometido diretamente o futuro da espécie, reduzindo o número de indivíduos e dificultando a reprodução.

O modelo dinâmico e o refinamento da distribuição

No segundo capítulo, é apresentado um dos grande diferenciais do trabalho de Letícia, que é o desenvolvimento de um modelo dinâmico, que incorpora não apenas dados climáticos, mas também impactos antrópicos, como desmatamento e incêndios. “Quando a gente acrescenta essas variáveis mais refinadas, o mapa de distribuição da espécie muda drasticamente. Áreas que pareciam adequadas ao modelo climático, na verdade, não são mais viáveis por causa dos impactos humanos”, explica.

Celeus obrieni, conhecido como Pica-pau-da-taboca| Foto: Marcelo Lisita

Esse modelo dinâmico é uma inovação na área de conservação. Ele permite prever como a distribuição do Celeus obrieni pode mudar no futuro, considerando cenários de aumento de temperatura e desmatamento. “A ideia é que esse modelo possa ser aplicado a outras espécies ameaçadas, ajudando a planejar ações de conservação”, explica a pesquisadora.

A ciência cidadã e o engajamento comunitário

O terceiro capítulo da pesquisa aborda o papel da sociedade na conservação do Celeus obrieni. “A ciência cidadã é fundamental para a estruturação do conhecimento sobre espécies ameaçadas”, afirma Letícia. Essa colaboração entre cientistas e cidadãos é especialmente importante para espécies raras e de difícil detecção, como o Celeus obrieni. “Muitos dos registros que a gente usa vêm de observadores de aves, que não são cientistas, mas contribuem enormemente para a pesquisa”, diz.

Embora seu interesse inicial se concentrasse na parte ecológica, Letícia percebeu que as conexões sociais e culturais poderiam enriquecer o estudo. Durante seu trabalho no laboratório de Etnobiologia e Biodiversidade da UFG, ela passou a conviver mais proximamente com comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas.

Logo do Laboratório de Etnobiologia e Biodiversidade da UFG | Foto: Guilherme Alves/ Jornal Opção

“Foi uma experiência maravilhosa porque eu nunca tinha tido esse contato tão próximo e acaba que é tudo muito associado. Então, a questão da aproximação com povos tradicionais, entender qual é a visão deles e a nossa visão, enquanto cientista, enquanto acadêmico, a gente está aprendendo.” Nessa troca, Letícia destaca o quanto essas populações detêm conhecimentos práticos, enquanto a academia oferece a base teórica. Juntar as duas visões, diz ela, é fundamental para desenhar ações de conservação mais eficazes.

Ao mesmo tempo, o grupo OIA Passarinhar (Observadores de Aves) @oia_passarinhar, do qual ela participa, desenvolve projetos de turismo de base comunitária e capacitação de guias locais, especialmente em áreas como a Chapada dos Veadeiros e Terra Ronca. Para Letícia, o grande trunfo é mostrar às comunidades que a preservação da biodiversidade pode gerar renda e oportunidades. “Conversamos com guias da região e ele consegue atender uma pessoa que tem interesse em conhecer uma espécie. ‘Ah, eu quero ir para registrar a foto de tal espécie, você sabe onde que está?’” A pesquisadora ressalta que, no Nordeste Goiano, muitas vezes se enxerga pobreza onde, na verdade, há uma riqueza natural e cultural imensa. A universidade entra como parceira, oferecendo conhecimento científico e treinamento, enquanto as populações locais compartilham sua vivência e seu entendimento do território.

Em meio a viagens e trabalhos de campo, o foco da pesquisa no pica-pau-da-taboca foi se solidificando. A espécie, endêmica do Cerrado, apresenta poucos registros em comparação com outros pica-paus do gênero Celeus. Letícia se viu diante de inúmeras perguntas, desde quais são as reais necessidades do animal até como prever sua distribuição futura em cenários de mudanças climáticas. “A gente começa com um olhar. E conforme você vai tendo experiências, vivências, conhecendo outros lugares, outras coisas, outras realidades, você começa a incorporar essas coisas na sua pesquisa. E você acaba tendo um olhar mais amplo.”

Nos encontros com quilombolas e indígenas, Letícia descobriu histórias surpreendentes, como a do bicho ameaçado de extinção que aparece na roça de arroz de uma senhora da comunidade Kalunga. “Ficamos, ‘Como assim? O bicho que é ameaçado de extinção, que a gente é louco pra ver, tá lá na roça da senhorinha Kalunga, comendo o arroz dela.” Esse tipo de relato, diz ela, ilustra a lacuna de informação e mostra como a preservação pode ser mais efetiva se houver troca de saberes e conscientização local. “Então essa é a hora que a gente conversa com ela e fala, ‘olha o privilégio que a senhora está tendo’. E olha o privilégio que a gente também está tendo de conseguir ouvir essa história.”

Resultados e próximos passos

A pesquisa de Letícia já identificou áreas prioritárias para a conservação do Celeus obrieni. “A gente conseguiu chegar a uma lista de mais de 10 unidades de conservação que estão apresentando muito fogo e têm uma capacidade muito grande de abrigar muitas espécies”, diz. Essas áreas, que incluem parques e reservas no norte do Cerrado, são cruciais para a sobrevivência da espécie.

A conclusão da tese de Letícia se aproxima, e ela reforça que o trabalho não termina com a defesa acadêmica. A intenção é continuar explorando as lacunas de conhecimento sobre o Celeus obrieni, buscar financiamentos para pesquisas de campo e, sobretudo, dar retorno às comunidades que ajudaram na coleta de dados. 

“Quero continuar trabalhando com conservação, não só do Celeus obrieni, mas da biodiversidade do Cerrado como um todo. Ainda há muito a ser feito”, conclui.

O Pica-pau-da-taboca, com seus hábitos discretos e sua história de redescoberta, tornou-se um símbolo da luta pela conservação no Cerrado. E, graças ao trabalho de pesquisadores como Letícia, há esperança de que essa espécie única continue a existir, ecoando seu canto nos tabocais do bioma mais ameaçado do Brasil.

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