Um olhar inédito para a biodiversidade aquática do Rio Araguaia

Exemplos de organismos da biodiversidade aquática que estão sendo monitorados pelo programa Araguaia Vivo 2030, incluindo (no sentido horário), Stauroneis sp. (fitoplâncton), Bosmina sp. (zooplâncton), um inseto aquáticodaordemEphemeroptera, Hoplisoma araguaiense (peixe siluriforme), “arraia-maça” (Paratrygon aiereba), espécie criticamente ameaçada de extinção, e Pontederia crassipes (macrófita aquática). O fitoplâncton e zooplâncton são visíveis apenas com auxílio do microscópio, com aumento de 400x, e o inseto aquático é visível com auxílio de uma lupa | Fotos: Marcela Fernandes de Almeida, Lígia Pereira Borges de Mesquita, Thales Yann da Silva Orlando, Fabrício Barreto Teresa

por João Carlos Nabout, Priscilla de Carvalho,
Fabrício Barreto Teresa e Ludgero Cardoso Galli Vieira*
Especial para o Jornal Opção

A biodiversidade representa toda a variedade de vida que existe em um ambiente e é um conceito fundamental para entender a riqueza e o funcionamento dos ecossistemas naturais. Quando falamos da biodiversidade aquática, referimo-nos às inúmeras formas de vida que habitam rios, riachos, lagos, águas salobras e ambientes marinhos. Esses organismos desempenham papéis essenciais no funcionamento dos ecossistemas, influenciando processos como o ciclo de nutrientes, a qualidade da água e a cadeia alimentar.

A biodiversidade aquática pode ser microscópica, como no caso das algas fitoplanctônicas e do zooplâncton, organismos invisíveis a olho nu e que encontramos flutuando na água, fundamentais para a base da cadeia alimentar aquática. Por outro lado, a biodiversidade aquática também inclui organismos de maior tamanho corporal, como peixes, plantas aquáticas (macrófitas), crustáceos e mamíferos aquáticos, que podem ser observados diretamente na natureza. A composição e a distribuição dessas espécies variam conforme as características dos ambientes em que vivem: rios de correnteza rápida apresentam um conjunto de espécies diferente daquelas encontradas em lagos de águas mais paradas, por exemplo. Da mesma forma, os padrões de biodiversidade mudam ao longo do tempo, influenciados pelos ciclos de cheia e seca ao longo do ano e por eventos climáticos extremos.

O Brasil é um dos países mais ricos do mundo em biodiversidade aquática. Com uma extensa rede de rios, lagos e áreas alagadas, o território brasileiro abriga uma grande diversidade de espécies aquáticas, muitas das quais são endêmicas, ou seja, não ocorrem em nenhuma outra região do planeta. A bacia hidrográfica do Rio Araguaia, por exemplo, é um dos sistemas fluviais mais importantes do país, servindo de habitat para uma ampla variedade de peixes, invertebrados e plantas aquáticas. Entretanto, apesar de sua riqueza, a biodiversidade aquática enfrenta ameaças crescentes. O desmatamento das matas ciliares, a contaminação por agrotóxicos e metais pesados, a introdução de espécies exóticas e as mudanças climáticas alteram significativamente os ecossistemas aquáticos, impactando diretamente a biodiversidade. A redução na quantidade e qualidade da água impactam diretamente a manutenção dos habitats aquáticos e por consequência as espécies que ocorrem nesses ambientes.

Diante desses desafios, pesquisas e projetos de monitoramento são essenciais para compreender as transformações nos ecossistemas aquáticos e promover a conservação da biodiversidade. Projetos amplos e integradores como o programa “Araguaia Vivo 2030” (financiado pela FAPEG e executado pela TWRA) e o PPBio Araguaia (financiado pelo CNPq e executado pela PUC-GO) em andamento são fundamentais para avaliar os impactos ambientais e propor soluções sustentáveis para garantir a manutenção os ecossistemas aquáticos. Por meio de expedições científicas e da combinação de métodos tradicionais com técnicas inovadoras de monitoramento ambiental, como o uso de drones e a análise de DNA ambiental, esses projetos busca mapear, avaliar e acelerar o monitoramento da biodiversidade aquática (esses tópicos serão detalhados nos próximos ensaios).

Biodiversidade aquática no programa “Araguaia Vivo 2030” e “PPBio Araguaia”

O inventário da biodiversidade aquática e seu monitoramento são ações centrais nos projetos em andamento no Araguaia. Informações inéditas vêm sendo obtidas por meio de expedições de coletas de organismos aquáticos ao longo da bacia. Essas coletas são realizadas especialmente em lagos conectados ao rio (lagoas de inundação) e aos seus principais tributários, e em riachos ao longo de toda a bacia. Até o momento, diversas expedições já foram realizadas, ampliando o conhecimento da biodiversidade da bacia, conforme os mapas apresentados abaixo.

Mapas mostrando a região da bacia do Araguaia, permitindo visualizar a extensão das coletas da biodiversidade aquática realizadas em nossos projetos, incluindo as amostragens dos lagos no rio Araguaia e seus principais afluentes (à esquerda) e nos riachos (à direita) | Imagem: Acervo dos Pesquisadores

Em primeiro lugar, já há alguns anos são realizadas expedições na época de cheia do rio, em geral nos meses de janeiro e fevereiro, sendo que a última expedição aconteceu ao longo do mês de fevereiro de 2025, como apresentado na primeira reportagem do “Araguaia em Foco”. Durante esta expedição, foram estudados 150 lagos, abrangendo uma ampla área de toda a planície alagável da porção média do rio Araguaia. Ao longo desses últimos anos, vem sendo realizado o levantamento da diversidade de algas planctônicas, zooplâncton, macroinvertebrados, algas perifíticas, macrófitas e peixes, além de coletar dados de paisagem, ambientais e imagens espectrais obtidas por drones. Mais recentemente, passamos a analisar também as populações de botos nos rios e nos lagos adjacentes, além de coleta de plantas e observação de aves nas suas margens.

Em 2025, a equipe de pesquisadores permaneceu embarcada em um barco-hotel, sendo as coletas realizadas utilizando quatro barcos, as chamadas “voadeiras”, cada uma delas sendo responsável por diferentes grupos biológicos. A expedição teve início no Povoado de Luiz Alves (município de São Miguel do Araguaia, em Goiás) e percorreu o rio inicialmente no sentido norte. Nesse trecho, foram realizadas coletas em lagos do rio Araguaia e em tributários como o rio Cristalino, rio das Mortes e rio Javaés. A amostragem mais ao norte ocorreu próximo ao município de Santa Maria das Barreiras, já no Estado do Pará. A expedição retornou a Luiz Alves e deu início à coleta na porção sul, voltando até Aruanã, em Goiás. Nesse trecho, as coletas foram realizadas no rio Araguaia e nos principais afluentes dessa região, incluindo o rio Crixás, o rio do Peixe, o córrego Água Limpa e o rio Vermelho.

Barco hotel utilizado pela equipe de biodiversidade aquática para coleta nos lagos, em fevereiro de 2025 | Foto: Acervo dos Pesquisadores

Em setembro de 2024 foram selecionados oito lagos ao longo de uma extensão de 300 km entre Cocalinho-MT e a Ilha do Bananal para um estudo mais aprofundado focado nos peixes. Essa foi a Expedição de Peixes de Lagos, que possui uma logística diferente daquela utilizada na expedição com o barco-hotel. Uma equipe de 10 pessoas percorreu o trecho do rio acampando nas praias e realizando coletas com redes de espera e redes de arrasto nos lagos.

Nessa ocasião, além de realizar um diagnóstico das espécies que ocorrem nesses ambientes, a expedição focou no estudo de parasitas, microplástico e mercúrio presente no tecido dos peixes. Nessa expedição foram registradas espécies de peixes de maior porte e bem conhecidas, como o “sorubim-cachara” (Pseudoplatystoma reticulatum) e o “mandubé” (Ageneiosus inermis), além de dezenas de espécies menores e bem menos conhecidas, como o “peixe-folha” (Hypoclinemus mentalis), diversas espécies de “bagres”, “cascudos”, “tuviras”, “corrós” e “piabas”. Destaca-se a ocorrência da arraia Paratrygon aiereba, criticamente ameaçada de extinção, e de espécies endêmicas da bacia Tocantins-Araguaia (só ocorrem na bacia do Tocantins-Araguaia), como a “arraia-de-fogo” (Potamotrygon henlei).

O “mandubé” (Ageneiosus inermis), uma das espécies mais apreciadas de peixes do Araguaia

Uma outra abordagem importante para entender a biodiversidade aquática na bacia do Araguaia é realizar coletas em pequenos corpos d´água e riachos de cabeceira ao longo de toda a bacia. Também em 2024 foi realizada a Expedição Riachos, em que foram estudados 80 riachos distribuídos ao longo da bacia com o objetivo de catalogar e monitorar a biodiversidade aquática nesses ambientes, algo essencial para uma abordagem integrada da bacia. Foram três equipes de oito pessoas que se distribuíram simultaneamente ao longo da bacia, percorrendo cerca de 10.000 Km nos estados de Goiás, Mato Grosso, Pará e Tocantins. Foram amostradas as comunidades perifíticas (organismos que colonizam as superfícies sólidas em ambientes aquáticos), insetos aquáticos e terrestres, fungos e os peixes, além da coleta de amostras para análise do “DNA ambiental”.

Entre os grupos biológicos estudados chamou a atenção a grande diversidade de peixes. Em sua maioria, as espécies de peixes de riachos são de pequeno porte e incluem dezenas de “piabas”, “cascudos”, “bagres”, “corrós” e “tuviras”. No entanto, chamou a atenção o registro do peixe-elétrico, o “poraquê” (Electrophorus voltai), além de algumas espécies com formatos corporais curiosos, como o “peixe-pau” (Farlowella sp.), um cascudinho que se camufla entre pequenos galhos e raízes, e o “muçum” ou “enguia” (Synbranchus marmoratus), que é totalmente desprovido de nadadeiras. O material coletado ainda está sendo identificado, e é possível que haja novos registros para a bacia, e muito provavelmente a descoberta de espécies que até então eram desconhecidas pela ciência.

Coleta da biodiversidade de peixes na Expedição em riachos na bacia do Araguaia | Foto: Acervo dos Pesquisadores
Coleta da biodiversidade de algas aderidas a rochas na Expedição em riachos na bacia do Araguaia | Foto: Acervo dos Pesquisadores

Portanto, nos anos de 2024 e 2025, estão sendo realizadas grandes expedições com o intuito de conhecer a biodiversidade aquática e compreender como as espécies respondem às mudanças ambientais e ao uso do solo. Ou seja, nesse primeiro momento, está sendo feita uma ampla fotografia da biodiversidade aquática. Esse conhecimento será fundamental para o desenvolvimento de estratégias de monitoramento da biodiversidade aquática.

Monitorando a biodiversidade no rio Vermelho

Nos dias 03 e 04 de março de 2024, foram encontradas diversas espécies de peixes mortos no rio Vermelho e no rio Araguaia, na região de Aruanã. A partir desse ocorrido, foi montado um comitê de crise dentro do programa Araguaia Vivo, sendo realizadas emergencialmente coletas de água e microalgas planctônicas em diversos pontos amostrais no rio Vermelho. Uma discussão mais detalhada desse programa de monitoramento será apresentada oportunamente, mas algumas informações preliminares sobre a mortalidade podem ser encontradas em um boletim técnico publicado no primeiro número da “Revista TWRA: Ciência & Sustentabilidade”. Mas, em um contexto de biodiversidade aquática, é importante destacar que uma parte desse monitoramento envolve a coleta e identificação de microalgas, visíveis somente com o uso do microscópio, mas que são importantes sensores da qualidade da água.

No primeiro monitoramento, realizado em março de 2024, foram identificadas 36 espécies e 205.593 indivíduos de microalgas na bacia hidrográfica do Rio Vermelho. Em relação à quantidade de microalgas, tanto o Lago Acará quanto o ponto de amostragem fluvial mais próximo, seguindo o fluxo do rio (ou seja, à sua jusante), se destacaram de todos os demais pontos pelos elevados valores de quantidade de microalgas. Além disso, no Lago Acará a espécie predominante de cianobactéria identificada foi a Chroococcus sp, uma espécie generalista caracterizada pelo seu pequeno tamanho, forma de vida unicelular e reconhecida na literatura científica como não-tóxica. Devido ao seu rápido crescimento e tamanho diminuto, a alta concentração de nutrientes no ambiente propiciou um aumento significativo na sua densidade populacional, que pode funcionar como um indicador precoce de potenciais mudanças na comunidade de microalgas e outros organismos aquáticos. Com a alteração de outras variáveis ambientais, é possível que novas espécies fitoplanctônicas, incluindo cianobactérias potencialmente tóxicas, aumentem em densidade. Após o registro da mortalidade no rio Vermelho, iniciamos um protocolo de monitoramento, com coletas periódicas ao longo dos anos de 2024 e 2025, com a expectativa de entender melhor as causas da mortalidade e, desse modo, tentar evitar (ou pelo minimizar) novos eventos como esse.

Imagem ampliada no microscópio (400X) de cianobactéria do gênero Chroococcus no rio Vermelho, da bacia do Araguaia | Foto: Acervo dos Pesquisadores

Biodiversidade aquática e a integração de saberes

O conhecimento gerado por essas expedições e programas de monitoramento da biodiversidade é essencial para o desenvolvimento de estratégias de conservação da bacia e a preservação desse patrimônio natural, o rio Araguaia. Entretanto, é importante destacar que, além dos trabalhos específicos de pesquisa sobre a biodiversidade aquática, durante todas essas expedições os pesquisadores têm se aproximando das comunidades locais, que sempre acolhem essas iniciativas com grande receptividade. A participação da sociedade, cada vez mais, tem se mostrado fundamental para o sucesso do monitoramento e da conservação da biodiversidade em todo o mundo. Somente com a união entre ciência, conhecimentos tradicionais e políticas públicas eficazes será possível garantir que o rio Araguaia continue inspirando e encantando aqueles que o visitam, hoje e no futuro.

João Carlos Nabout – Professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), e coordenador da Atividade de Biodiversidade Aquática do programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA.

Priscilla de Carvalho – Professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e vice-coordenadora da atividade de Biodiversidade Aquática do programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA.

Fabrício Barreto Teresa – Professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), coordenador da Atividade de Turismo e Pesca do programa “Araguaia Vivo 2030” e vice-coordenador de Biodiversidade do PPBio Araguaia.

Ludgero Cardoso Galli Vieira – Professor da Universidade de Brasília (UnB), vice-coordenador do Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA e vice-coordenador do projeto PPBio Araguaia.

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