Do Pelô para Hollywood: como o Oscar de ‘Ainda Estou Aqui’ impacta o cinema baiano?

Como não poderia deixar de ser, a comunidade dos profissionais do cinema baiano está em festa com o Oscar para Ainda Estou Aqui. Para além das comemorações, contudo, muitos já tentam enxergar no horizonte em que a premiação, inédita para o Brasil, pode influenciar no cinema e na própria cultura brasileiras.Mais do que um prêmio artístico, o Oscar é visto principalmente como um prêmio da indústria cinematográfica, um reconhecimento desta indústria – a estadunidense, no caso – como um selo de qualidade universal para filmes capazes de dialogar com quaisquer plateias, no mundo inteiro. E isto, evidentemente, é muito importante para o cinema brasileiro.Para o veterano cineasta baiano Pola Ribeiro, atual diretor do Museu de Arte da Bahia (MAB), “É um prêmio em um momento super importante, quando o cinema brasileiro trava lutas como a regulação do VoD (video on demand), além de ser importante no seu próprio país, para o seu próprio público”.“É significativo que o Brasil esteja ganhando prêmios em festivais internacionais, como Veneza, Berlim, tivemos Gabriel Mascaro ganhando Urso de Prata em Berlim (com O Último Azul), agora esse prêmio no Oscar. Não que o Oscar seja o mais importante festival do mundo, mas o Oscar representa muito como impacto de mercado, nas pessoas. Não é à toa que todos estavam vibrando nas ruas, com máscaras, com drones no céu, com fantasias”, acrescenta.Roteirista baiana indicada ao Emmy, Susan Kalik lembra que o prêmio ajuda a desfazer o preconceito que muitos brasileiros ainda tem com nosso próprio cinema: “É preciso reverter essa ideia de que ‘cinema nacional é mediano’. Só diz isso quem não assiste cinema nacional, não gosta de cinema. O Oscar, o Globo de Ouro, ou o próprio Emmy, no qual fui roteirista de obra indicada este ano, são espelhos importantes que refletem o talento dos profissionais envolvidos, mas não só isso”.“É preciso MUITO investimento financeiro nas obras para que o filme possa fazer uma carreira com visibilidade, ocupação, distribuição e penetração para que ele possa ‘sustentar’ pertencer ao grupo de filmes que serão cotados a integrarem estes espaços de premiação únicos”, acrescenta.Já Solange Moraes, idealizadora e diretora do festival Os Filmes que Eu Não Vi, também vai na mesma lógica do reconhecimento da indústria: “Oscar significa indústria, significa que o mundo está olhando para o Brasil, para a cinematografia brasileira de uma forma diferenciada”.Encorajada pela premiação, a produtora diz guardar grandes esperanças no futuro de uma indústria cinematográfica brasileira e baiana: “Hoje, eu revisito meus projetos de forma mais audaciosa, acreditando que vale a pena realmente investir no cinema brasileiro, nas profissões que ele produz, investir nessa indústria. E esperamos que a regulação do VOD também proporcione mais visibilidade aos filmes brasileiros. E que a Bahia Filmes, que está chegando, seja um projeto que venha falar do cinema do interior, da capital e do Brasil”, disse Sol, citando a empresa pública de audiovisual da Bahia, lançada pelo governador Jeronimo Rodrigues no último dia 13, com orçamento anual previsto em R$ 22 milhões.IncontornávelCrítico, curador e professor de história do cinema brasileiro da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), o baiano Marcos Pierry chama atenção para o fato de que o Oscar para Ainda Estou Aqui não veio de repente, é o resultado de uma luta, um reconhecimento que o cinema brasileiro vem buscando há muito tempo: “O Oscar é incontornável. Ele é tão criticado há décadas quanto permanece importante. Então, por mais que tenhamos críticas ao Oscar por privilegiar um certo tipo de cinema, ainda que tenha essa categoria para produções estrangeiras, tem toda aquela ressalva que a gente está acostumado a ouvir falar”.“Mas qualquer pessoa que entende um pouquinho de audiovisual sabe que o Oscar é uma premiação incontornável, é importante sim, é um fato cultural. Esse primeiro Oscar brasileiro não veio de uma hora para outra: é uma construção de décadas mesmo, tanto do nosso cinema em seu conjunto, mas também do trabalho do Walter Salles, que é um diretor que vive de olho nas premiações internacionais”.Pierry lembra que Walter Salles sempre esteve presente nas premiações internacionais “É bom lembrar que boa parte dos filmes dele – se não todos – tem uma circulação internacional. Foi assim com Terra Estrangeira (1995), foi assim com Central do Brasil (1998), foi assim com Linha de Passe (2008). Seus filmes já ganharam prêmios em todos os festivais europeus importantes. Já ganhou em Cannes, Veneza, Berlim, marcou presença no Oscar em 99, com todo mundo lembrando disso por conta da presença da Fernanda Montenegro”, observa.Cineasta, roteirista e produtora, Ceci Alves destaca o momento de retomada do cinema brasileiro em que o Oscar veio, após os anos de descalabro no setor com o desmonte que se deu de 2016 até 2022: “O Oscar de filme estrangeiro é épico, é histórico, por todas as razões que a gente já sabe, mas principalmente pelo momento do nosso mercado, do audiovisual brasileiro, em que a gente tá no meio de um caminho após retrocessos, um paradeiro, uma negligência de seis a quatro anos – melhor dito, de uns quatro anos. De falta de investimentos, de aportes do governo, foram anos que tivemos que produzir com muito pouco ou em regime de guerrilha. Mesmo assim, as ideias continuaram voando, os produtores continuaram buscando soluções para colocar os seus filmes na lata e o público continuou ávido de saber de se ver na tela do cinema, de conhecer sua história e de se autoconhecer através do cinema”, afirma.“Então, apesar de ter sido um momento de escassez, foram momentos muito profícuos, em que a gente demonstrou e se provou ser mais forte do que as vicissitudes que abalam o mercado. E quando eu falo de estar no meio do caminho, é porque apesar dessas agruras, uma das soluções que a gente buscou foi justamente entender os meandros do mercado para saber como fazer para que nossas produções saíssem do papel. E Ainda Estou Aqui é a prova dessa curva, a prova desse profissionalismo, do mercado audiovisual brasileiro, que não está mais se contentando em viver de ciclos, de espasmos. Ele quer continuidade e o recado que esse Oscar nos dá é que precisamos sim, ter continuidade para nossas produções, precisamos sim, ter um mecanismo de mercado, de aporte de financiamento consolidado para que a gente ganhe não só apenas um Oscar, mas que a gente continue galgando posições em festivais”.Alerta contra o fascismoCineasta argentino radicado na Bahia, Carlos Pronzato é um documentarista acostumado ao cinema de guerrilha em seus filmes, sempre muito combativo e de olho nos lances sociais. Para ele, o caráter antifascista de Ainda Estou Aqui é talvez seu maior trunfo: “Acho extremamente importante (a premiação) pelo momento que se vive aqui no Brasil, se não no mundo todo, com a ascensão das ultradireitas, como aconteceu recentemente na Alemanha, e isso é um perigo, justamente por ser esse país que pode ser um foco irradiador dessas políticas terríveis, mortalmente terríveis, que isso novamente aconteça, como já aconteceu aqui no Brasil em 2018, durante os quatro anos do governo Bolsonaro, e é isso que o filme aponta, que o filme ataca e tenta, de alguma maneira, desde seu posto de combate, justamente nos alertar para isso”.“O filme consegue, com uma narrativa conduzida pela mão de mestre de Walter Salles, avançar nesse sentido, ao colocar a Eunice Paiva como protagonista, isso também já é um ponto fundamental, como ele mesmo disse na premiação, isso já está sendo importante para o cinema brasileiro ao conseguir o seu primeiro Oscar. Isso vai promover o cinema brasileiro, vai dar um destaque mundial”, acredita Pronzato.Em convergência com Pronzato, a cineasta baiana Fabíola Aquino também destaca a mensagem de advertência que o filme traz contra ditaduras: “Neste momento de tanta distopia e retrocesso, em que a ditadura, os torturadores e os assassinos são louvados por algumas pessoas, este filme ganha uma importância ainda maior. Ele faz uma crítica contundente ao movimento da extrema direita que se espalha pelo Brasil e pelo mundo. É um filme que nos lembra da importância da democracia, da liberdade e da justiça”, afirma.”A vitória de Ainda Estou Aqui é um sinal de esperança para o Brasil e para o mundo. É um reconhecimento da qualidade do cinema brasileiro e da sua capacidade de contar histórias que importam, dando protagonismo à mulher”, conclui Fabíola.
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