Alemanha discute maior pacote de estímulo desde a queda do muro de Berlim

"Friedrich Merz"

JOSÉ HENRIQUE MARIANTE
BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS)

O que era uma discussão quase teórica durante a campanha eleitoral se tornou prioridade depois que Donald Trump resolveu bater boca com Volodimir Zelenski no Salão Oval da Casa Branca, na semana passada. Friedrich Merz, premiê eleito da Alemanha, acertou com o SPD de Olaf Scholz, o primeiro-ministro derrotado, um acordo que permitirá o relaxamento do freio da dívida, a versão local do teto de gastos.

A exceção à regra, estabelecida na era Angela Merkel e que consolidou a Alemanha como um exemplo de austeridade fiscal, para o bem e para o mal, será usada para aumentar os gastos com segurança, depois que os EUA resolveram abandonar o apoio à Ucrânia. Foi acertado ainda um dispêndio extra de 500 bilhões de euros, em dez anos, para atualizar a infraestrutura do país e uma flexibilização na regra de endividamento dos estados.

O anúncio do acordo, na terça-feira (4), entrou como mais um item da congestionada agenda europeia, mas não foi ignorado pelo mercado. Títulos públicos do mundo inteiro foram afetados; os Bund, da Alemanha, tiveram o maior salto em um único dia desde 1997. O jornal Financial Times escreveu que o país se prepara para o maior programa de estímulo desde a queda do muro de Berlim, há pouco mais de 35 anos.

Assim como uma Alemanha estagnada pesava sobre a economia da União Europeia, uma Alemanha gastadora provoca euforia e críticas. Ações da indústria bélica dispararam nos últimos dias; os papéis da Siemens e da Volkswagen subiram 6% em um único dia. A “bazuca” alemã, como vem sendo chamado o pacote em relatórios de instituições financeiras, é vista com ponderação por especialistas, tanto pelo aspecto econômico como pelo político.

O arranjo entre os conservadores da CDU e os sociais-democratas não é para o próximo Parlamento, que deve tomar forma, segundo as melhores estimativas, na Páscoa. É para o atual Bundestag, onde as atuais bancadas dos dois partidos chegariam com mais facilidade à maioria constitucional de dois terços para aprovar as alterações.

O sistema político alemão não permite que o governo fique à deriva. Enquanto o novo Parlamento não assume, o antigo continua funcionando, com plenos poderes, assim como o gabinete do atual primeiro-ministro. Pouco depois da vitória nas urnas, Merz chegou a ventilar a possibilidade de aproveitar a maioria que dificilmente terá no futuro para as questões mais complicadas. Logo foi desestimulado, quando especialistas disseram que a manobra poderia ser judicializada, por envolver a Constituição.

Os pruridos foram postos de lado depois que o governo americano sugeriu e depois reiterou que iria forçar a Ucrânia a um cessar-fogo. Para Merz, é obrigação da Alemanha salvaguardar a Europa “das ameaças de liberdade e paz”.

Alice Weidel, líder da AfD, que alcançou a segunda maior bancada na eleição de fevereiro, o melhor resultado da extrema direita em 90 anos, ou desde o nazismo, afirmou que Merz está cometendo um estelionato com seus eleitores. “Ele não foi eleito para isso”, disse a parlamentar, que já via o apoio à Ucrânia com reservas e agora aderiu a Trump, assim como boa parte dos populistas europeus.

Os Verdes, que compõem a atual coalizão de governo com o SPD, devem apoiar o projeto, que já passa por discussões internas no Parlamento nesta e na próxima semana.

O freio da dívida foi inserido na Lei Básica em 2009, na esteira da crise financeira global. O instrumento limitou a capacidade do governo de assumir novas dívidas a 0,35% do PIB. O que sobrou de espaço fiscal foi quase inteiramente consumido com bem-estar social e benefícios à população. Scholz conseguiu exceção parecida para mitigar os efeitos da pandemia, mas viu sua coalizão ruir, em novembro do ano passado, quando tentou repetir a dose usando como argumento o apoio à Ucrânia.

Os liberais do FDP, que também fazia parte do governo, se recusaram a seguir com o projeto, deixando Scholz sem alternativas. Foi essa crise que provocou a antecipação das eleições.

Merz, advogado corporativo que fez fortuna em bancos de investimento, também era um fã da austeridade fiscal alemã, apesar de não ter descartado discutir o relaxamento da regra fiscal durante a campanha. Trump lhe forneceu os argumentos para a polêmica reforma, que o tornará primeiro-ministro de fato antes mesmo de assumir o cargo.

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