Crença, fé e financiamento público: o Carnaval da inconstitucionalidade

Pedro Sérgio dos Santos

Recorro ao escritor britânico George Orewll¹ para entender os motivos que levam uns a serem “mais iguais que os outros” na fazenda democrática dos bichos, chamada Brasil. Fico a observar um país cuja elite intelectual brada por igualdade provocando, na prática, ainda mais desigualdade. Brada por liberdade e apoia um atual estado de presos políticos que há anos não se via em terras tupiniquins. Brada por um Estado laico, mas faz o carnaval da religião.

No carnaval de 2025, a maioria esmagadora das escolas de samba do grupo especial do Rio de janeiro fez a opção de enredos voltados exclusivamente para as temáticas das religiões de matriz africana.

Em entrevista ao jornal “O Globo”, o carnavalesco Milton Cunha, defendendo a expressão religiosa, afirma textualmente: “Escola de samba é macumba, e acabou!”, “as baterias tocam para os orixás”, gostem ou não gostem , “os ogãs saíram dos terreiros e foram tocar na bateria…”, “a macumba é a causadora maravilhosa de toda essa procissão”.

Milton esclarece que, de fato, os enredos carnavalescos são narrativas dessas religiões e seus respectivos conteúdos. Enfim, continua o carnavalesco a tecer comentários sobre o carnaval e as religiões de matriz africana, estimulado por perguntas de uma repórter que coloca os cristãos do Brasil, católicos e protestantes (chamados na entrevista de neopentecostais), como intolerantes. Ou seja, faz o grotesco papel de acirramento do “nós” contra “eles”.

O carnavalesco esclareceu definitivamente qual é o caráter do carnaval no Rio de Janeiro e em outras praças. Trata-se de alguém com boa formação acadêmica — com mestrado e doutorado, e profunda experiência no mundo das escolas de samba, portanto suas lições antropológicas sobre o carnaval não deixam nada a desejar para quem foi leitor de Darcy Ribeiro ou de Gilberto Freyre e sabe bem como se formou o povo brasileiro e sua cultura. Esse não é o X do problema. Desculpem se falo de X em tempos de amarga censura.

Segundo o portal Poder 360, “as escolas de samba do Rio de Janeiro tiveram acesso a pelo menos R$ 107,66 milhões de dinheiro público em 2025. Os valores incluem repasses do governo estadual e da prefeitura. Trata-se de uma alta de 16,8% em relação ao mesmo período em 2024, quando houve a destinação de R$ 92,16 milhões”².

Pintura de Carybé

Em São Paulo, a prefeitura repassou, segundo a “Revista Oeste”, 65,4 milhões para o carnaval e as escolas de samba. Ora, assim poderíamos novamente indagar sobre a laicidade do Estado frente a esses gastos de Erário?

Por outro lado, redes de televisão estabelecem contratos milionários com as instituições carnavalescas para veiculação das imagens e a relação estreita entre o carnaval e o jogo do bicho, que é pública e notória, por si só já aponta uma fonte real de financiamento para as escolas de samba.

Estudioso do assunto, Vinícius Natal, da Universidade Federal Fluminense, discorre muito bem sobre esse mecenato em seu artigo “Sobre relações de reciprocidade entre jogo do bicho e escolas de samba no carnaval carioca”³. Mesmo assim, o dinheiro público agora escorre para a divulgação daquilo que vai para além da simples manifestação festivo-musical, ou seja, vai para a propagação militante de uma determinada fé.

Não se pode e não se deve fazer oposição ao carnaval como festa popular; não é esse o caso. Ainda há um certo nível de liberdade no país e o povo pode sair às ruas e festejar o que bem entender e ainda em tom de brincadeira fazer suas piadas em forma de fantasias, colocando o humor em suas músicas e a sua marca de espontaneidade em milhares de blocos esparramados pelo Brasil. Todavia, há de se indagar se o poder público deve deslocar dezenas de milhões de reais em festas e agremiações carnavalescas que priorizam seus fenômenos religiosos, pois continuam as indagações: a Constituição Federal de 1988 ainda vigora? O Estado é laico?

Imaginem o Estado ou a Prefeitura de uma cidade fazendo a doação de 107 milhões de reais para que cristãos — católicos ou evangélicos — fizessem uma festa popular (e de fato seria popular também, pois. de acordo com o IBGE, a maioria do povo brasileiro se define como cristã) de quatro dias com ampla divulgação de suas doutrinas.

Imaginem o mesmo valor destinado aos grupos budistas, islâmicos de qualquer cidade brasileira para que, de igual forma, fizessem a propagação dos cultos e credos de forma festiva, ou ainda se houvesse a doação desses vultosos recursos para a ampla e festiva divulgação do hinduísmo e do Bhagavad Gita, de forma sistemática, ano a ano?

Evidentemente que a militância woke e gramsciana que impera na grande mídia iria invocar todos os deuses da causa iluminista, positivista da República Velha, do olimpo politicamente correto e do Trio Vermelho, Stálin, Mao e Che, para usarem a arma constitucional e mais uma vez dizer que o Estado é laico e não se pode dar dinheiro público para causas religiosas — o que é uma verdade.

Iriam bradar cheios de razão: “É uma aberração jurídica o dinheiro público financiando a banda evangélica que toca hinos de louvor pelas ruas da cidade!”. Ora, não se deve investir verbas do Erário em causa religiosa, quer de forma direta ou indireta. Não se pode fazer do carnaval uma via transversa de proselitismo de qualquer que seja a religião ou seita com o financiamento dos nossos tributos.

De outro lado, é constitucionalmente possível afirmar que tais manifestações carnavalescas são legítimas quando custeadas por particulares ou mesmo pelos agrupamentos religiosos que ali se fazem representar. Quem quiser, que pague pelo seu carnaval. Poderia ainda argumentar que o carnaval gera empregos e o dinheiro injetado pelo Estado nas escolas de samba ajuda as comunidades, todavia tal argumento não pode, mais uma vez, validar a utilização de verba pública para qualquer tipo de proselitismo religioso.

Pior do que serem financiadas pelo poder público, por vezes se viram as escolas de samba não só veicularem determinados credos e expressões religiosas às custas do Erário, como também afrontaram outras igrejas e religiões que estão fora da matriz africana. Com representações recentes que apontam lúcifer vencendo Jesus Cristo, deteriorações da imagem de Jesus e da Virgem Maria e até mesmo fatos que foram parar na justiça, quando, por exemplo, a Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro conseguiu liminar impedindo, em 2008, a exibição do quinto carro alegórico da escola de samba Viradouro, sob o enredo “É de arrepiar”, que fazia referência às vítimas do Holocausto e mostrava uma pilha de corpos esquálidos e nus, onde desfilaria um destaque fantasiado de Adolf Hitler (4).

Evocando um real passado de escravidão e incontestáveis dívidas sociais do Estado brasileiro para com os povos africanos que aqui vieram, os carnavalescos se abstêm de todo e qualquer limite para suas formas criativas e às custas dos caros impostos pagos por todos os brasileiros, negativamente procedem com ataques aos credos e religiões, desde que não sejam aqueles tão elogiados nos sambódromos, como é o caso das religiões de matriz africana. Carnaval é festa popular e tem para todos os gostos, só não pode ser financiada pelo bolso do povo, qual seja o do Estado, ainda mais quando se trata de fazer proselitismo de qualquer religião. No mais, há sempre que se pensar em quantas escolas, hospitais ou habitações populares poderiam ser pagos com R$ 107,66 milhões de reais, inclusive financiando políticas públicas para melhor qualidade de vida da população negra, que historicamente ainda está à margem dos benefícios que o Estado deveria proporcionar a todo cidadão.

Pedro Sérgio dos Santos é professor da Universidade Federal de Goiás.

Referências
1-George Orewll .A Revolução dos bichos. Ed. FTD. São Paulo . 2009
2-https://www.poder360.com.br/poder-economia/escolas-de-samba-do-rio-receberam-r-1077-mi-de-dinheiro-publico/
3- https://journals.openedition.org/pontourbe/5873
4-https://www.migalhas.com.br/quentes/401281/carnaval-x-religiao-desfiles-foram-parar-na-justica-por-heresia

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