Uma leitura do “aparecer” e “desaparecer” em Teatro de Sabbath, de Philip Roth

Se for preciso, posso dizer, no erotismo: eu me perco. — George Bataille

Helder D’Araújo

Especial para o Jornal Opção

O escritor americano Philip Roth (1933-2018) preocupou-se em muitos de seus romances com o tema do desaparecimento. Noutras palavra, com o nada, a morte. A personagem Mickey Sabbath é um velho em estado final, fisicamente, pois tem as mãos atrofiadas impedido de exercer a profissão de titereiro. Mas, também, psicologicamente. No final do romance, tornado a encarnação de Sade, não está mais no controle de suas faculdades mentais.

Mickey Sabbath faz um pré-mergulho antes de nadificar-se, isto é, desaparecer de vez. Essa relação é medular e avassaladora na experiência da personagem. Seu declínio começa quando o irmão morre. O primeiro que desaparece de sua vida. Logo após a mãe, cuja sanidade desapareceu ao saber que o filho mais velho havia sido abatido na guerra.

Numa luta para não perder também a sanidade, Mickhey Sabbath resolve sumir de Nova Jersey. Alista-se na Marinha e mundo para que te quero. Dá-se nesse momento uma relação muito curiosa entre a finitude e o erotismo. Aquilo que Mickey chama de rota do romance é o panegírico do entrar e sair em vaginas como educação.

Philip Roth: um dos mais importantes escritores americanos | Foto: Reprodução

Após a temporada de viagens e bordéis pela América, Mickey torna-se titereiro. Ele tem um talento ímpar com as mãos e com a representação. Aprende a arte e retorna aos Estados Unidos para exercer o seu teatro. O teatro indecente de Sabbath. Logo de início entra em embate com a moral pública. Livra-se da cadeia com os amigos pagando fiança. As apresentações ainda continuam. O fantasma do desaparecimento surge novamente na morte de sua sogra. A primeira esposa de Sabbath mergulha num transe catatônico um tanto parecido com a mãe de Mickey. Outro fantasma que o apavora (reaparece) e ficará mais presente em suas relações. A mãe de Mickey Sabbath, já desaparecida (morta), reaparecerá com mais força no estágio final do velho Casanova.

Nikki não se recupera do desaparecimento eterno da mãe. Ela também some. Mickey dirá em alguns momentos que a matou. Se foi isso, de fato não sabemos. O que se sabe é que ela nadificou-se, escafedeu-se para nunca mais aparecer. Buscas vãs. Eis mais um fantasma para Mickey. Coro de demônios.

Assim que desaparece sua primeira mulher também há de desaparecer a vida em Nova York. A de Nova Jersey já era, por ora. Idos momentos com o irmão falecido, Morty. Irmão esse que era seu verdadeiro herói. Nikki sumiu, então adeus amigos (como diz Clarice Lispector na crônica “Ao correr da máquina”) de teatro. Sabbath precisa esquecer o desaparecimento da primeira esposa. Como? Com a atual, que era sua amante quando Nikki o auxiliava no teatro.

São décadas de retiro. Agora o coringa atua em Madamaska Falls. Um lugar retirado nas montanhas. É lá que vive maritalmente com Rosseana, mas também em adultério com Drenka Balich, uma imigrante iugoslava. Segue-se uma relação erótica pungente de treze anos. Mickey necessita dessa dimensão a fim de manter a continuidade em meio a descontinuidade do tempo e da morte ( a morte está sobre nós, em cima de nós, nos governando, a morte. p. 365). Porém, Drenka tem câncer. Morre. Mickey afunda tragicamente. Mas não afunda só. Já havia levado Rosseana junto. Um caso escandaloso, a gravação de uma ligação de Mickey e sua aluna cai em ouvidos públicos. É denunciado, exposto. Cai Resseana no alcoolismo. O drama se aguda. A mulher sóbria some para dar lugar à alcoólatra.

Drenka foi sua parceira sexual mais promissora. Ela o satisfez quando viva e quando morta. O homem dá-se à prática de necrofilia. Não somente ele sente prazer ao visitar o túmulo de Drenka. Faz também mais dois amantes seus. Essa mulher de meia idade fogosa. Em um só dia teve relações com quatro amantes. Teve orgasmo num único dia dezenas de vezes. Contudo, ela tem família. Um filho, policial, que visita o túmulo da mãe e acaba encontrando esses esquisitos com os pênis nas mãos, uivando para a lua e repetindo mitos em que deuses criam a partir da ejaculação. Inconcebível!

Mickey Sabbath foge.

Novamente o amoral encontra-se em Nova York. Eis a segunda parte do livro. Ser ou não ser. Na casa do amigo, irreconhecível, Mickey manipula sentimentos. Chora copiosamente. Lembra de Nikki, a desaparecida. Agora está no olho da rua. Não tem mais a segunda esposa.

Norman Cowan, velho amigo, pede para que Mickey fique em sua casa. Ele fica. Mas o que vem a ser é hediondo. Hospedado na casa de Norman, acomodado no quarto de sua filha, Deborah, o velho sátiro procura vestígios materiais da jovem para excitar-se e masturba-se. O próprio amigo flagra o degenerado com uma foto da moça em mãos.

Confesso que esse é um momento de agonia para o leitor. Um deles, adianto. No dia seguinte outro episódio digno do teatro indecente de Sabbath desenrola-se. O amigo intruso ainda procura dentro da casa dos Cowan vestígio de fotos. Quer algo para excitar-se. A empregada acha-o bagunçando tudo e o confunde com um ladrão. Dá-se novamente mais um espetáculo de vergonha alheia. Mesmo assim safa-se. Até quando?

Mickey precisa ir ao enterro de seu segundo grande amigo, Lincoln Gelman. Mas antes flana por Nova York. Aproveita para ver o que está rolando na perigosíssima cidade. Interage com transeuntes, com mendigos, ele mesmo pede esmolas. Aproveita para lidar com seus demônios internos. Rememora o período do declínio de Nikki, seu desaparecimento.

A desaparição é algo violento. Nikki imita o comportamento de não poucos animais ante a perda de um indivíduo querido. Sabbath fica perplexo com a forma que sua primeira esposa se apega ao cadáver (o aparecido inerte) da mãe. Essa perplexidade seguida de dor indizível, Mickey também a comunga. Sua mãe ficou assim por anos até ela mesma desparecer de uma vez por todas. Era uma aparecida inerte. Sabbath lembra que ela assobiava e após afundar no luto nunca mais fez. Com a morte do primeiro filho a mãe de Mickey morreu sem ser enterrada.

A aparência bonita de Mickey desapareceu. É um barbudo, idêntico a um rabino. Rabino do erotismo, da representação. Mas não nos enganemos. Tudo que aparece oculta algo. Tudo. Mesmo o ser execrável que Mickey Sabbath se tornou. Norman o expulsa de casa. Quase Michele Cowan transa com ele. Sua fisionomia é repulsiva — assim como os seus atos. Apesar de tudo mora dentro do homem memórias celestes, o infinito renovado a cada dia (página 439). Lembra da mãe assobiando. Lembra do irmão Morty, seu herói, antes de ir para a guerra rumo ao infinito por excelência. Mesmo que isso o faça procurar o túmulo de seus avós e pais em Nova Jersey para recordar, humanizar-se.

É nesse retorno que Mickey Sabbath reencontra um primo de cem anos. Milagrosamente o primo tem uma caixa com coisas de Morty. Mickey reencontra motivo para suspender o plano de suicídio. Porém, sua sanidade já está solapada. As relações aparecem e desaparecem e até reaparecer perpassam toda a obra. Outro binômio, internamente e externamente aparece. Externamente, o homem barbudo e seus atos destrutivos que naufraga a gente junto dele. Internamente, nem anjo tampouco demônio. Humano. Por fim, notamos também em “O Teatro de Sabbath” a visceral correspondência do erotismo e a morte.

Um dos críticos mais admirados por Philip Roth, Frank Kermode disse que “O Teatro de Sabbath” é um “dos romances mais notáveis dos últimos anos”. O livro é de 1995. Kermode nota o caráter rabelaisiano deste livro do autor judeu.

De acordo com o biógrafo Blake Bailey (página 666 na edição espanhola: “Philip Roth — Una Vida”), “O Teatro de Sabbath” era o romance “favorito” de Philip Roth. Ele se divertiu mais ao escrevê-lo do que na elaboração de todos os outros romances.

Helder D’Araújo é poeta, prosador e crítico literário.

O post Uma leitura do “aparecer” e “desaparecer” em Teatro de Sabbath, de Philip Roth apareceu primeiro em Jornal Opção.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.