Labores do tempo nas obras de Milena Oliveira

Você precisa aprender a dar tempo ao tempo. Essa frase eu ouvi muito de minha avó materna, costureira de profissão, que já na infância via em mim a ansiedade que ainda me acompanha. No mundo pós-pandemia de Covid-19, temos como sintomas que carregamos decorrente desse período o acúmulo de tarefas, a sobrecarga de trabalho e sua precarização angustiante, adoecedora do corpo e dos afetos, um cansaço permanente atravessado pela sensação de não dar conta das exigências da vida, mediados pelo imediatismo da comunicação digital. Parece que é tudo pra ontem. Não sobra muito espaço na vida para dar tempo ao tempo. Lembrei da frase de minha avó quando encontrei Processo autodestrutivo (2023), desenho bordado sobre tela, de Milena Oliveira.Os trabalhos de Milena, baiana de Jacobina, que mora e trabalha em Salvador, dizem dessas e de outras questões contemporâneas que nos atravessam como problemas sociais, se contrapondo materialmente à aceleração produtivista em seus processos com a cerâmica e o bordado, e sendo eloquente em um estado aparentemente contraditório de quietude e desassossego em sua feitura, que a relação com suas obras nos permite acessar como espaço que nos é próximo, porque é casa, cama, cotidiano, mas com a vantagem de estranhá-los profundamente. Vantagem porque inquieta e leva à curiosidade que movimenta.A cerâmica e o bordado, principais técnicas trabalhadas pela artista, que começou com o desenho, pedem gestos que nos foram roubados, lembrando, como diz o filósofo Vladimir Safatle em Alfabeto das colisões, que existe nos gestos mais banais e repetitivos do cotidiano, a evidência da “gênese material das ideias”. Essa elaboração em processo requer um colocar-se em uma camada distinta de tempo que, para poder dizer incisivamente do presente, precisa escapar da artificialidade cronológica, precisa abandonar-se em sua espiral de experiência, memória, gestualidade, repetição, sentidos, sensações e sonhos.Em Processo autodestrutivo (2023), temos ao fundo três linhas em preto que formam o encontro de duas paredes, conformando a dimensão do espaço ocupado por uma estrutura que lembra um beliche por ser uma cama sobre outra, mas que não parece suportar o uso que a esse objeto é destinado: seus pés são altos triângulos de linhas finas, a ponta deles se conectando ao estrado da primeira cama, com pouca estabilidade.Os dois colchões estão rasgados, se desfazem. Esses rasgos constituídos pelo desfazer e pelo cortar a trama tecida deixam nossas entranhas à mostra, o material de que são feitos nossos pesadelos, medos mais recônditos, os que alimentam rasgo a rasgo, nossa ansiedade.Em outros trabalhos como, por exemplo, O peso para aterrar (2021), Abstrata escuridão (2021) e É o que é (2021), a cama e o quarto conjugam a imbricação entre corpo, vida, subjetividade e a dificuldade inerente à comunicação com o outro. Nas duas primeiras obras, a figuração do humano está concentrada em partes isoladas do corpo: pés que saem do meio dos colchões, e por braços, apenas um, estendido no colchão em O peso para aterrar, abandonado para fora de uma pilha de travesseiros, e dois braços levantados em Abstrata escuridão, que envolvem ou buscam segurar uma nuvem fugidia como fumaça, pensamentos, o escuro.O peso para aterrar apresenta três cores, preto, branco e vermelho. Existe o contraste do preto liso do chão que comporta e vermelho texturizado do colchão, relevo criado pela sobreposição de inúmeros pontos em que perto do braço estendido formam um acúmulo – corpo sufocado, cortado, inerte.Abstrata escuridão está construído em preto e cinza, sendo apenas o colchão e o travesseiro delineados com linha branca, o que os faz levitar. Os braços estão em movimento, e parecem buscar dar forma ao etéreo que alcançam, braços suplicantes. Angústias, medos, solidão. O quarto e cama são lugar de vivências estruturantes da vida, de seu nascimento até o seu fim, como fica evidente em É o que é: outra cama, essa com cabeceira, um colchão que agora é apenas contorno vazado pela neblina sutil do quarto, e um longo mosquiteiro feito de pequenas cruzes brancas caindo e envolvendo a cama até o chão.Em 2009, a historiadora francesa Michelle Perrot publicou o seu História dos quartos. Perguntada sobre o tema um tanto estranho, afirmou que são muitos os caminhos que levam ao quarto: repouso, sono, nascimento, desejo, amor, meditação, leitura, escrita, buscar por si mesma, religiosidade, silêncio, reclusão imposta, doença, morte, e que suas próprias experiências com quartos irrigaram a narrativa.Milena nos diz de suas experiências, fala desse mínimo e constante vivido dia a dia, tão distante das grandes narrativas, tão próximas às nossas. O quarto é um microcosmo que cristaliza as relações entre espaço e tempo. Perrot se pergunta: qual é a economia política do quarto? Quarto real ou imaginário, espaço múltiplo do doméstico, a forma de qualquer habitação é a vida e guarda a marca de quem a ocupa, expandindo as posturas do corpo para o mundo.Limite em estado de crise (2021), apresenta duas casas simplificadas em seu desenho. Uma é maior que a outra e é apenas contorno vazado, iluminada pela janela cheia ao fundo. A menor é escuridão densa com uma pequena janela vazada à direita. Uma cabe na outra e essa mesma possibilidade parece afastá-las. Existem códigos desenhados em preto na parede da casa maior, uma forma de escrita binária, uma tentativa de comunicação que se dissolveria, seria anulada pelo fundo preto da casa menor, caso ela se encaixasse ali.A dificuldade de comunicação é outro elemento que aparece nos trabalhos de Milena, a partir do que Angelica Melendi, em Território de bordadores: histórias de amor, de loucura e de morte (2024) vai chamar de impulso cursivo, o predomínio da linha que simplifica imagens em simulacros de manuscritos, sendo um interstício entre desenhar e escrever. No caso de Milena, esse elemento, mais do que ao manuscrito, nos leva aos números, à contagem do tempo e ao binarismo da linguagem digital.Essas marcas, esses impulsos cursivos, estão também em Terapia é tempo (2021), em que a contagem lenta do processo terapêutico está nas paredes, em blocos de traços usados para não se perder no tempo interior, o tempo do outro lado desse corpo que habita uma casa de ponta cabeça, que tem o dedo machucado, que se esconde ou sufoca atrás da aparente suavidade dos travesseiros, e que mais que tudo, precisa aprender a dar tempo ao tempo.Esse elemento que também aparece em Da série o tempo no verso do avesso (2022), evidencia o quanto o tecido deixa de ser apenas uma superfície no processo de bordado, porque a agulha o atravessa e se torna seu próprio revés. A comunicação, suas nuances e complexidades é peça fundamental na série Jogos da Manipulação (2024), composta por trabalhos em que elementos relacionados aos jogos de palavras, como palavra-cruzada, e manuais de instrução são agenciados aos gestos de mãos que manipulam a comunicação à medida em que buscam entender suas regras e criando suas próprias, modificando o todo, nos convidando a pensar sobre como nos movemos nesse estado de tensão social e política.O bordado, o desenho e a aquarela conjugados no lento, minucioso e detalhado labor da artista, conjugam os objetos e espaços cotidianos em sua plenitude como agenciadores de cuidado, vigilância e afeto coletivos. Os espaços da casa são habitados também pelos sonhos que levam à transformação do presente acessando como ancestralidade e possibilidade de existência futura.Espaço de ensaio (2024) e Manto ancestral (2024) seguem uma composição em abóbada, cúpula transparente, montanha/manto que cobre o corpo com todos os nomes do passado, estado entre água profunda e céu aberto conjugados em água-viva, mosquiteiro e estrelas. Constelação imaginária (2022) se aproxima de uma estrutura metálica de observatório cheio de janelas, lugar de criação estratégica de um mapa, invenção que faz olhar abertamente a existência sem respostas pré-definidas, como olhar nossa própria existência no tempo com enigma. Milena Oliveira é representa pela Alban Galeria de Salvador.*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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