Pirâmide invertida

Amanhece o terceiro dia no abismo. Um sentimento novo a todos irmana, o de pertencimento à mesma terra. Todos, igualmente naturais. “Podemos ficar morando aqui?” pergunta Líris, acarinhando sua bonequinha de olhinhos profundos. Irene olha para Tanice, pois prefere que ela responda. “Na verdade, aqui não é diferente de qualquer outro lugar. A Terra é uma só. Em cada cantinho, os mistérios mudam e os segredos se multiplicam, basta que a gente entenda que somos diferentes mas iguais e que nunca somos os mesmos. Daqui a pouco vamos voltar e viver de um novo jeito.”

Assim falou Tanice. E suavemente se põe a cantar, no que é seguida pelos demais. Cada um a seu modo e tom, diferenciados e unidos. Aos poucos, às vozes outro som se faz ouvir: o de um estranho vento, que convoca para o retorno à superfície.

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“Vamos voltar sim. Só que algo me diz que há um outro caminho. Sintam o vento que vem do lado da fonte que brota das profundidades da terra.” Tanice sugere que, antes de seguirem o chamado do vento, atentem para o formato de fundo da cratera. “Parece uma pirâmide invertida”, considera a criança. Eva, intrigada, observa: “De fato, ao invés de uma pirâmide que aponte para o firmamento, esta orienta para a terra”.

Cristian acrescenta: “Tem tudo a ver. Este desenho natural da pirâmide não busca a luz no alto, mas nas entranhas da terra”. Líris, por sua vez, instiga: “É como se as torres de uma catedral fossem mergulhar na terra e suas fundações estivessem nas nuvens”.

Irene lembra que “tudo está se ajeitando. Já sabemos que as cobras não seduziram Eva e Adão e que cobras não representam a maldade. Assim, precisamos repensar muita coisa.” Líris pergunta à sua bonequinha: “Você pelo jeito sempre soube disso. Posso te virar de pernas para o ar e continuas me observando com o cantinho de teus olhos. Pareces uma árvore com as raízes para cima”.

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“Talvez agora as pessoas nos entendam melhor. Assim como aqui tudo parece de ponta-cabeça, também nossas raízes sabem disso há muito tempo. Quem melhor conhece os subterrâneos do que nossas raízes? Elas dialogam com tudo o que está mergulhado na terra”, suspiram os troncos decepados. Cristian ouve atentamente e acrescenta: “Lembro como as pessoas se sentiam bem depois de passarem pelo lamário, onde eram massageadas com uma lama especial, que encontramos num bosque, que abrigava lírios e cogumelos que só existem ali.”

“Cogumelos? Tem uns que são venenosos, não é mesmo?”, se apressa a criança. “Sim, tem mesmo”, responde Cristian. E segue: “Mas tem aqueles que são comestíveis e os que curam.” Eva entra na conversa: “Lembro do bosque com aqueles cogumelos num canto da área do sanatório. A gente se deitava no chão para ver as lamelas na parte de baixo do chapéu do cogumelo. Nós dizíamos que elas estavam emendadas, como os tecidos que a gente juntava com agulha e linha”. Tanice extasia-se: “Suturas? Vejam o que está aparecendo ali na frente, na ponta da pirâmide de que vocês falavam há pouco”.

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Todos se aplicam na direção apontada por Tanice. Num primeiro relance, parece ser uma rocha como as já conhecidas de nossos aventureiros. Todavia, logo percebem algo diferente. “Um trilobita!”, exulta Tanice, que prossegue: “Lembram que contei a vocês que vim com os ventos que levam suas areias do Saara ao Cabo Verde? Na minha terra, pude conhecer um sítio paleontológico, onde foram encontrados muitos desses fósseis que estamos vendo ali adiante.” “Fósseis?”, vibra a criança, que acrescenta: “No Natal de dois anos atrás ganhei um presente, tipo esses de montar um dinossauro”.

Tanise esclarece: “É algo parecido, só que único. O que temos ali em frente, incrustado na rocha, é um fóssil de trilobita. Como encontrar aqui um trilobita? Acho que a criança tem razão. Está tudo invertido”. Tanice duvida da própria descoberta. Questiona suas convicções. A lógica do que lhe fora ensinado esboroa. Lembra da areia do Saara que escorria por entre seus dedos, que agora afagam Luna.
“O que é mesmo um trilobita?” pergunta Líris.

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