Opinião | A herança que não prescreve

Eu sou herdeiro, admito: de um Preto Velho e de um velho preto escravizado. Dos meus antepassados não recebi nem um par de olhos azuis, nem mesmo uma pele fofamente rosada. Confesso que procurei também alguma relíquia, uns míseros tostões, que encurtassem meus passos rumo à dignidade – menos boletos e mais sombra. Não tive esta sorte! Eu, como tantos, não encontrei facilmente o desenho da minha árvore genealógica. Diria que compreender quem chegou antes dos meus avós já é complicado.

Não nasci em Blumenau. Cheguei aqui, mais ou menos, aos 15 anos de idade, depois de percorrer outros municípios do nosso Estado. Nunca, nem na loira cidade, nem nas demais localidades onde frequentei a educação formal, achei nos livros um pedaço de história que contasse um rabisco sobre a minha origem.

Obviamente, sou um brasileiro miscigenado: meio indígena, outra parte africano – oriundo de uma região próxima ao Marrocos – e uma pitada de algum colonizador europeu que se aproveitou dos meus ancestrais.

Meu avô materno, o Vô Gídio, como o chamávamos, nunca foi alfabetizado. Mas, estranhamente, aprendeu a ler e a escrever depois de retornar de um transe no qual incorporava um personagem da história. Ele se dizia espírita, em uma época em que estar ligado à Macumba, ao Candomblé ou à Umbanda era como reforçar o preconceito contra os mais pobres. Dizia receber o espírito de João Maria Agostinho, que, segundo os registros, foi um dos monges João Maria que percorreram o sul do Brasil e, um deles, teve participação na Guerra do Contestado. Esta entidade, que usava o corpo do meu avô, era um Preto Velho Branco.

Meu outro avô, conhecido por Gigi, faleceu antes mesmo do meu pai completar 4 anos. Sempre foi muito difícil encontrar histórias, memórias ou vestígios de sua passagem pela terra. Uma prima, pesquisadora e professora de uma universidade federal, foi quem conseguiu encontrar fragmentos de quem era esse homem. Não sabemos o contexto exato, mas vovô foi adotado quando, em um Brasil liberto, ainda era um pequeno, um jovem escravo.

Embora o atraso na chegada à terra em duas gerações tenha evitado que as algemas prendessem meus punhos à escravidão, o tempo não foi suficiente para que a sociedade evoluísse e que eu, ou qualquer outro, tivesse que conviver com o racismo. Esse enfrentamento, vivido pelos meus avôs, é, certamente, a herança que ficou para mim.

Nesta semana, o atacante do Palmeiras, Luighi, em jogo no Paraguai pela Libertadores Sub-20, sofreu ataques racistas durante uma partida – algo que insiste em se repetir.

Enquanto isso, do outro lado do hemisfério, um bilionário dono de foguetes – aquele que manda satélites para o espaço, mas não consegue elevar o próprio pensamento acima do nível do chão – pede perdão judicial ao policial que asfixiou George Floyd, o homem negro, até a morte. Fazendo de conta que o ar, indispensável para o pulmão de todos, fosse um privilégio exclusivo daqueles que têm a pele clara. Engraçado como gente que respira dinheiro acha que pode decidir quem merece respeito e respirar oxigênio.

O racismo é um velho conhecido nosso, um parasita que se moderniza e nunca desaparece. Trocou as correntes físicas por amarras invisíveis, desumanas e igualmente eficazes. Já não precisam mais de capitães-do-mato quando se tem algoritmos, nem de senzalas quando se tem periferia, nem de açoites quando se tem balas perdidas que, curiosamente, só atingem corpos pretos.

Meu avô Gídio, se estivesse aqui, provavelmente incorporaria seu Preto Velho Branco e diria algo sábio sobre como o tempo é circular e as feridas ancestrais permanecem abertas. Talvez contasse que, no plano espiritual, as almas não têm cor, mas que, aqui embaixo, no asfalto quente da realidade, a melanina ainda é usada como medida para distribuir direitos e apontar supostos defeitos.

Quando vejo Luighi sendo atacado em pleno século XXI, penso no meu avô Gigi, adotado num “Brasil liberto”, onde a liberdade era apenas uma palavra bonita no papel e inexistente na prática. Imagino – e não é difícil para você também – quantas vezes ele teve que engolir insultos semelhantes, quantas vezes teve que se fazer menor para caber no espaço que lhe era permitido ocupar.

Infelizmente, o racismo não é uma peça de museu. Seria bom pensar que ele é coisa do passado, uma antiguidade em exposição da história. Já posso imaginar os pais falando aos filhos, durante um passeio: “olhem, crianças, é assim que éramos! Que atraso, não?” A realidade, lamentavelmente, é outra, como um software do atraso em constante atualização, que se adapta às novas plataformas sociais.

Eu, herdeiro de dois avôs que carregavam nas costas o peso da discriminação, me vejo agora tentando decifrar essa herança. Sem escritura, sem registro em cartório, o legado que me foi deixado foi transmitido pelo sangue e pela experiência. Uma herança que não prescreve, que não se dilui com o tempo, nem se esgota com a chegada de novas crianças.

Os boletos da dignidade continuam chegando para nós, pretos e pardos, todos os dias. Pagamos com nossa sanidade quando temos que explicar, pela milésima vez, que não se trata de “mimimi”. Pagamos com nossa paciência quando precisamos educar aqueles que herdaram condições para frequentar as mais douradas escolas e que já deveriam saber muito sobre o custo social de pisar sobre os outros. Derramamos mais que nosso suor quando precisamos trabalhar o dobro para provar o óbvio: que somos capazes.

Enquanto bilionários brancos pedem clemência para assassinos, policiais escolhem como alvo jovens pretos e torcedores imitam macacos nas arquibancadas, nós seguimos. As páginas dos jornais reproduzem discussões sobre anistia. Nós, os pretos e pretas do país, queremos mesmo é saber como conseguir mais respeito.

Tenho orgulho da minha herança, dos meus avôs que resistiram, cada um à sua maneira. Sou muito grato a João Maria Agostinho, o Preto Velho que ensinou meu avô a ler nas entrelinhas do mundo. Agradeço muito ao jovem escravizado que, de alguma forma, sobreviveu para que meu pai pudesse nascer, para que eu pudesse estar aqui escrevendo estas palavras.

Não recebi olhos azuis nem pele rosada, mas ganhei algo mais valioso: a resiliência de quem sabe que o racismo existe, que também existimos, apesar dele, e continuaremos existindo, ocupando espaços, respirando – sim, respirando – contra a vontade de quem acha que pode determinar quem merece o ar deste planeta.

A luta contra o racismo não é uma herança que possamos recusar. É o imposto que pagamos por viver em uma sociedade que ainda precisa aprender mais sobre a diversidade. Esta é a única forma de um amanha como espécie neste pequeno planeta azul – que, visto do espaço, não tem fronteiras, não tem raças, não tem preconceitos. O mundão que apenas gira, indiferente do tamanho do nosso ego.

Seguimos, herdeiros do passado, construtores do futuro, sobreviventes do presente, esperando que um dia cresçamos o suficiente para perceber o óbvio: que somos todos feitos da mesma poeira cósmica, do mesmo barro primordial, da mesma humanidade imperfeita e contraditória.

Ao racistas fogo em vocês!

Tarciso Souza, jornalista e empresário

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