Cillian Murphy troca grandeza de Oppenheimer por drama silencioso e impactante

“Sou um homem irlandês com orgulho aqui essa noite”. Com essa frase, na cerimônia do Oscar do ano passado, quando agraciado com a estatueta dourada por sua performance no papel de Julius Robert Oppenheimer, Cillian Murphy encerrou o seu discurso de agradecimento reafirmando suas origens e o modo como esse orgulho em relação ao seu país lhe é evidente. Assim, vê-lo assumir como projeto seguinte à epopéia dirigida por Christopher Nolan, um filme que tem em sua essência uma urgente denúncia e que toca em feridas sociais tão marcantes para a Irlanda, é algo que torna Pequenas Coisas como Estas uma obra muito apropriada para seu protagonismo.E se sua atuação na pele do homem que criou a bomba atômica tinha sua fluidez calcada na verborragia de sua construção, bem como em sua transformação física que, no resultado final, somava-se à grandiloquência da música de Ludwig Göransson e à intricada montagem de Jennifer Lame, neste seu primeiro trabalho após a super exposição trazida pelo longa de Nolan, a percepção palpável é a de uma proposital desaceleração somada a um estado de contemplação de seu personagem.Tal compasso narrativo se encontra tanto nos silêncios e olhares da atuação de Murphy quanto no modo como o diretor Tim Mielants cria o ritmo de seu filme-denúncia. O mesmo é captado pelo testemunhar de Bill Furlong, o humilde carvoeiro interpretado por Cillian, que não se entrega à omissão diante de monstruosidades cometidas pelas freiras de uma instituição católica local. Ao mesmo tempo, o agora adulto e pai de família luta contra o turbilhão emocional trazido pelos traumas de sua infância, que acaba por transformar suas cicatrizes em novas feridas.Mal religiosoConhecidas como “As Lavanderias de Madalena”, as instituições católicas que operavam na Europa, principalmente na Irlanda, entre o século XVII e o final do século XX, supostamente davam abrigo a jovens mulheres abandonadas por seus familiares por serem julgadas como pessoas perdidas, devido ao que consideravam um comportamentos imoral. Porém, o que se passava publicamente como sendo um local de caridade e acolhimento administrado por freiras para dar suporte a adolescentes, tratava-se de um lugar onde as mulheres trabalhavam em regime de escravidão, passando fome e sofrendo maus tratos.Em Pequenas Coisas como Estas, é pelo olhar do trabalhador Furlong, cuja própria mãe foi obrigada a entregá-lo para adoção e teve seu destino limado pelo abuso da igreja, que conhecemos a agonia de tais pessoas por trás do muro daquele convento.Enquanto tenta superar seu passado e ligação traumática com sua progenitora, Bill leva sua rotina trabalhadora e humilde, na qual retorna diariamente para seu ritual de lavar as mãos sujas de carvão na pia que fica na entrada de casa antes de reencontrar sua família grande e afetuosa para o tradicional jantar diário em conjunto.Neste encontro diário com suas meninas, algumas delas já se tornando em jovens adultas, o carvoeiro enxerga as dores das adolescentes que passam por aquela clausura de sofrimento dentro de um dogma religioso abusivo e carrasco. Na figura de Emily Watson no papel da madre superiora, o filme entrega seu perfil denunciatório de maneira mais evidente, colocando-a como um retrato de como a religião funciona como uma máfia em uma realidade exploradora da fé. Esse choque de perceber que o símbolo de sua crença pode ser algo a causar o mal entrega a outra luta do personagem que vale ser destacada aqui.Aquela contra seu próprio credo, uma vez que a sua presença familiar na igreja e o modo como, claramente, a quantidade de filhas que trouxe ao mundo denota exatamente a ideia de como a procriação foi algo cuja influência da igreja se fez em sua vida.Pequenas coisas imensasO roteiro de Enda Walsh, baseado no livro de Claire Keegan, cria para o espectador esses pequenos momentos da rotina de seu protagonista de maneira a nos fazer perceber como aquela vida sem mudanças, calcada justamente no dia a dia do suor do trabalho naquela fria cidade irlandesa, traz o conforto necessário para Furlong escapar de seus tormentos mentais atrelados ao passado. Sua vida em família é algo a se almejar.O desejo por um par de sapatos femininos como presente de Natal ou o modo como os mesmos representam para aquelas jovens algo saudável a construir suas vidas adultas a partir de uma infância feliz e afetuosa, são símbolos disso. Assim, ao observar o gradual crescer de suas filhas, a parceria constante e amorosa de sua esposa, e a maneira como o homem se entrega àquelas horas de trabalho árduo a compor o seu dia , a ideia da busca pela felicidade em coisas simples e pequenas se torna um fator primordial para o filme.No entanto, em uma das entregas de carvão que precisa fazer no convento, um pedido de socorro lhe faz querer sair da inércia. Servindo como um catalisador emocional, o pedido de uma das jovens que Furlong encontra escondida justamente no local de entrega do carvão, lhe faz reviver os próprios traumas diante do sofrimento pelo qual passou sua mãe.É neste ponto que Pequenas Coisas como Estas encontra sua virada. Mas ao invés de partir para um modo explosivo de busca por justiça através de seu protagonista, acertadamente a obra mantém seu ritmo cadenciado. Nós o vemos lutar internamente contra seus próprios traumas e contra a citada inércia para buscar agir em prol das vitimas dos abusos do clero feminino.E se apenas uma pessoa puder ser salva, isso já significará uma redenção para o atormentado Bill Furlong. Seu momento final, quando ao ato de lavar as mãos sujas de carvão no lavabo do hall de entrada de sua casa se acresce um novo elemento, torna-se uma representação precisa da generosidade que compõe seu caráter.Pequenas Coisas Como Estas (Small Things Like These) / Dir.: Tim Mielants / Com Cillian Murphy, Emily Watson, Eileen Walsh, Michelle Fairley, Clare Dunne, Ciarán Hinds, Mark McKenna, Zara Devlin e Louis Kirwan / Salas e horários: http://cineinsite.atarde.com.br/
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