Fractalidade em movimento

O encontro com o trabalho de Aislan Pankararu na Casa Rosa é uma retomada das possibilidades de experimentação estética e ancestralidade indígena no corpo-território brasileiro. A exposição, curada por Brás Moreau Antunes, traz duas espacialidades para apreciação do público, Encontro da terra seca, água doce e água salgada, com obras de Carlinhos Brown e Alberto Pitta, na sala inaugural, e Caatinga fractal, ocupando a Sala Rosa do espaço cultural.Aislan é um dos vencedores do Prêmio Pipa 2024 – com Aline Motta, enorê e Nara Guilchon – e na primeira sala apresenta A redescoberta, primeira criação em grande escala com seis metros de tela, produzida para a exposição dos artistas vencedores do Prêmio Pipa 2024, que aconteceu no Paço Imperial, na capital carioca.Na entrevista realizada para esta coluna, Aislan conta o que pintar A redescoberta significou: “Foi um trabalho bem diferente do que eu estava acostumado a fazer, falo do tamanho da tela e uso de cores. Eu tinha acabado de receber o resultado e convite para exposição do prêmio PIPA 2024 no RJ, e estava, digamos, vivendo um momento de desilusão com o universo das artes. Fazer esse trabalho foi reforçar muita coisa dentro de mim, é um fortalecimento e tudo isso veio simbolizado com a explosão de cores. O processo em si é muito intuitivo, vou fazendo, é uma espécie de necessidade evocar tudo isso em uma tela. É ancestralidade, medicina e caatinga caminhando juntos”.Agora em contato com a O olhar que ouve, de Carlinhos Brown, e Passado presente futuro, de Alberto Pitta, a tela de Aislan Pakararu compõe esta espacialidade proporcionando um vislumbre ético e estético dos artistas e suas referências ancestrais.No trabalho de Pita, o jogo entre as cores branca, amarela, preta e vermelha provoca vibração que se converte aceleradamente em sonoridades no trabalho de Brown. A redescoberta traz a pulsão das cores e suas associações em trilhas citoplasmáticas verdejantes sobre o céu escaldante, que reluz na alusão aos cactos e outras vegetações do semiárido, paisagem da terra natal de Aislan, Petrolândia, em Pernambuco.Além das telas, textos de cada um dos artistas montam esse encontro, no qual Aislan versa: “Corpo máquina que bombeia o respiro da vida e faz tantos mundos acontecerem. Deságua, em um lugar em que há vida pra gerar. E faz muitos ciclos acontecerem”. Entre as cores, traços e gestos das três telas, uma força se exprime na ambiência de outros tempos.Na entrevista com Brás Moreau Antunes, ele explica que a primeira parte da exposição foi concebida como “uma recepção para o público que vai adentrar a Casa Rosa começar por esse banho de cores, esse abraço envolvente pela dimensão das obras. É também uma ocupação do espaço da Galeria da Casa, uma instalação de muito significado, na qual as obras se conferem e conversam, colaboram para isso.” Segundo Brás, a presença dos dois artistas baianos é uma recepção para Aislan no estabelecimento de sua morada em Salvador, depois de se graduar em Medicina na Universidade de Brasília e viver em São Paulo.Brás continua a explicar sua proposta, sobre as obras que estão no mezanino: “Depois, ao subir para a Sala Rosa, temos um ambiente meio onírico, com o solo do Aislan e as obras suspensas dispostas em formato de espiral, o que permite que as obras sejam admiradas em conjunto e também individualmente. É um convite para adentrar esse universo do trabalho dele”. Esta segunda espacialidade é intitulada Caatinga fractal, nome de outra tela de Aislan, ali também exposta.Nesta espiral de obras, suas condições de telas flutuantes promovem a revelação dos títulos, especialíssimos, que ficam no chão, aterrando os fractais, em suas particularidades vegetais e promovendo uma dança possível na leitura compassada pelo deslocamento dos nomes. Como que em um jogo de corpo, ao ler os títulos, retorna-se para a obra, se envolvendo cada vez mais neste ambiente dos sonhos.Na obra Voltei, Nordeste meu amor as minúcias das formas que vão se multiplicando entre os tons vibrantes das cores na tela, promovem um mergulho nos detalhes em relação. “Nordeste que mostra marcas na minha pele de galhos, arbustos, com uma infância correndo na caatinga, um Nordeste de força sertaneja. Nordeste menino de interior. Um Nordeste que é cheiro de umbu, cheiro de caju, é massa de tapioca fresca na feira. É calor e mormaço, é a grandeza do sotaque. Eu senti muita falta disso ao sair de casa para estudar, agora depois de tanto tempo posso sentir essa alegria celebrativa interna e visual. Nordeste é um Sol, é luz”, conclui Aislan.Em sua infância, na vida de seu interior com os Pankararu, o artista narra intensa relação com o bioma da caatinga, hoje ameaçado por diminuição exacerbada de sua área original. Além desta associação à vegetação, ao semiárido em transformação, ao bioma da caatinga, Aislan traz as referências ao tempo de estudo da Medicina. Em Entranhas do impossível o lampejo criativo do título acompanha os sentidos da obra, em imagem na tela, como também para seu autor.Para Aislan, a relação com o saber medicina vai por um caminho muito intuitivo, mas é diferente apesar de toda essa bagagem da medicina e suas teias celulares: “Fiz esse trabalho aqui na Bahia tornando-o muito especial. Acho que esse título se deu de forma muito orgânica, de se imaginar que as impossibilidades podem até existir mas não são um fator determinante, se uma porta que se fecha, é preciso pular a porta, arrombar a porta, criar outra porta para se sacudir e sacudir o mundo. Dar jeito para algo, dar adeus às crenças limitadas”.A fractalidade é motivo de expressividade forte em Inflamação sertaneja, que em suas organicidades comunicam uma transmissão de calor, fogo, febre, energia. Aislan responde que a obra é um reconhecimento interno do lugar sertanejo e indígena Pankararu. “Acho que é uma influência do ser e do que se é vivido, quem olha pro ‘índio do semi árido’ ? Esses dois mundos entre outros se encontram dentro de mim, o que considero uma super inflamação, mas das boas potências de força e resistência”.Ao perguntar para o artista sobre a dimensão do sonho em sua obra, Aislan Pankararu responde que o mistério do sonho é algo que ele não pode revelar, pela garantia do poder do mesmo em sua condição desconhecida. “Vou respeitar muito esse sonhar mistério, pois as coisas apenas acontecem quando você menos espera. Principalmente, quando a gente coloca amor, simplesmente amor em troca de nada. Então, entendo que esse nosso encontro e de todo mundo para realização da exposição foi um sonho de querer bem. Entender também que não existe resposta para tudo, respeitar essa possibilidade”.Há momentos em que devemos mesmo é sentir. A conclusão é também de Aislan Pankararu: “Penso geograficamente a beleza desses acontecimentos, que simplesmente estamos dentro também. Esses encontros acontecem com a gente também e é lindo”.*Doutora em Arquitetura e Urbanismo, jornalista e integrante da Associação Filmes Quintal | E-mail: [email protected]*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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