Opinião | Prostitutas nas esquinas ou políticos nos plenários: quem é o verdadeiro problema do país?

Mais uma noite silenciosamente chegava, como devem ser todas elas. Nada de diferente no horizonte, exceto uma ideia que surgia na cabeça de um jovem parlamentar. Lentamente, as luzes se apagavam, os músculos relaxavam, os olhos se fechavam, e os pensamentos fluíam, permitindo que os sonhos desativassem a consciência. Ou, neste caso, enquanto alguns já estavam embriagados pelo sono dos justos, os pesadelos assumiam o comando, trazendo pavor ao confortável quarto funcional em Brasília.

Sim, antes de deitar em sua cama — foi uma madrugada mal vencida, presume-se —, um amor de gabinete foi embora depois de meia hora, com alguns reais do contribuinte na bolsa pequena. Eis aí o verdadeiro motivo de toda essa revolta.

Vem mais um dia de árduo trabalho, ignorando a fome do menino no semáforo e toda a desigualdade que dobra a esquina. O parlamentar, querendo vingar os fantasmas que o atormentam, teve uma epifania: “o verdadeiro problema do Brasil são, claro, as putas nas calçadas, que comem nosso dinheiro em troca de poucos minutos de trepada!”

Era como descobrir que o câncer tem cura, mas decidir combater a caspa. E assim surgiu a brilhante e sagaz ideia de Kim Kataguiri (União/SP), defensor ferrenho do liberalismo econômico — aquela doutrina que prega a não intervenção do Estado na economia e a liberdade individual como bem supremo.

Engraçada essa tragédia de gastar energia, tempo e dinheiro público para apresentar um projeto que busca prender quem ousa vender, de livre e espontânea vontade, o único bem que muitas mulheres marginalizadas possuem: o próprio corpo. O projeto de lei propõe pena de prisão de três meses a um ano para quem praticar prostituição em via pública.

Nelson Rodrigues, se vivo estivesse, diria que “no Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte”. O mesmo deputado que defende que o Estado não deve regular o mercado agora quer controlar as esquinas. Interessante como o liberalismo tem seus limites bem definidos: liberdade para o capital, controle para os corpos.

A lógica é curiosa, e diria até perversa. Ao empresário, as autorizações para vender tudo — bitcoins, infoprodutos milagrosos, tigrinho, bares com luzes vermelhas, pen-drives que fazem fumaça -. Para uma mulher, a lei do não. Fica proibida  de vender seu próprio corpo, não pode decidir o que fazer com o que está dentro dele. O livre mercado só funciona quando beneficia quem está de terno e gravata? Como diria George Orwell, “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”.

O que o nobre deputado parece não perceber é que seus amigos empresários já resolveram o “problema” há tempos. A prostituição não acabou — apenas mudou de endereço -. Saiu das esquinas e entrou em cada lar brasileiro pelo telefone celular. O que antes exigia um ponto estratégico na avenida movimentada, hoje se resolve com um clique.

Percorra hoje a Rua das Palmeiras, em Blumenau, antes um fervilhante mercado noturno de corpos à venda, e você encontrará apenas silêncio e escuridão. A famosa “Parada 1”, que já foi ponto de encontro obrigatório para quem buscava amor pago, agora é apenas um endereço como outro qualquer. O Vale das Bonecas, outrora um verdadeiro shopping center a céu aberto de serviços sexuais, não passa hoje de um nome que evoca memórias em uma geração que está envelhecendo.

As garotas não deixaram as ruas por falta de clientes. Hoje, inúmeras plataformas abrigam, no conforto, todos que estão dispostos a trocar juras de amor por dinheiro. Elas e eles apenas migraram para as telas, substituindo os olhares furtivos por mais discrição, mais segurança e, paradoxalmente, mais aceitação social. Agora, tudo acontece por mensagens diretas e transações instantâneas via Pix.

Sites como OnlyFans, Privacy, Fatal Model  e dezenas de outros transformaram o corpo e a prostituição em um negócio digital, com direito a banners em camisas de time de futebol, propaganda em podcast e até comerciais em horário nobre disfarçados de “site de relacionamento”. Aliás, o Estado mais conservador do Brasil, Santa Catarina, é o que registra o maior número de cadastros de pessoas interessadas em sugar daddy ou mommy.

“A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”. O capitalismo não eliminou a prostituição — apenas a modernizou, adaptou, precificou e tornou acessível com dois cliques. Transformou-a em negócio lucrativo, com investidores de venture capital e startups de sucesso. Ou seja, exatamente o que um liberal econômico deveria aplaudir. Isso, até o moralista francês La Rochefoucauld, lá no século XVII, já sabia definir.

A prostituição de rua é ruidosa, visível, incômoda para quem prefere ignorar a desigualdade social. O paradoxo é delicioso… Se quisesse mesmo moralizar o país, o parlamentar deveria começar quebrando smartphones. Afinal, é ali que a verdadeira revolução da indústria do sexo acontece. E não apenas isso: na palma da mão de qualquer um — adulto ou criança — está o acesso aos ambientes incivilizados e sem regulamentação: as redes e sites. Sem falar no patrocínio de sites adultos em camisas de times de futebol, aplicativos de relacionamento, canais de televisão… e a lista segue.

Claro que o problema para o público eleitor do deputado nunca foi a prostituição ou as garotas de programa — foi sua visibilidade. O incômodo não é o comércio do corpo, mas ver o que acontecendo na esquina de casa, lembrando-o das falhas sociais que preferimos ignorar.

Eis a jornada do herói às avessas: em vez de enfrentar os verdadeiros monstros, nosso protagonista cria espantalhos e se gaba por derrotá-los. Enquanto a plateia aplaude, os problemas reais continuam crescendo nas sombras, longe dos holofotes.

Ainda contamos com uma brutal desigualdade social, com pessoas passando fome e um déficit habitacional de 5,8 milhões de moradias. Essas são as causas reais que levam tantas pessoas à prostituição e para as ruas. A falta de condições básicas para que os jovens — meninas e meninos — sonhem com um futuro melhor, com dignidade mínima. A pobreza, a falta de oportunidades, a desigualdade de gênero, a violência doméstica — seguem intocadas, como sempre, e infelizmente carecemos de iniciativas para transformar essa realidade.

E assim segue o Brasil nessa cruzada moral. No fim das contas, o problema nunca foi a prostituição, mas como a mulher escolhe o que fazer com seu corpo. É mais fácil criminalizar a pobreza do que combatê-la, não é?

Se é verdade o que dizia Nelson Rodrigues — que “o dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro” —, também é certo que não venceremos os problemas do Brasil apedrejando as prostitutas. Já passou da hora de todos acordarem para enfrentar os problemas reais do país, como o sequestro do orçamento público pelo puteiro. Ops, digo, Congresso brasileiro.

Tarciso Souza, jornalista e empresário

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