Contistas escrevem sobre a própria morte. Conto 2 — Edival Lourenço

Mergulho na endorfina primordial

Edival Lourenço

Especial para o Jornal Opção

Se Brás Cubas, de Machado de Assis, declarou: “Evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá do outro mundo”, eu também me valho dessas esquivas, até porque, usadas há 144 anos, já nos acostumamos com elas, a tal ponto de os críticos classificarem essa obra de Machado como o primeiro romance brasileiro de feições realistas. (Por mais contraditório que pareça, nosso Realismo teve início com as memórias narradas por um fantasma. Ou seja, nosso realismo já nasceu fantástico).

O que pretendo contar, no entanto, de forma póstuma e bem resumida, sem suspenses nem ganchos de narrativa, não são propriamente minhas memórias, mas apenas algumas circunstâncias de minha morte e os instantes que a sucederam. Assim, livro-me também do dilema, vivido por Cubas, se deveria começar pelo início, ou seja, pelo nascimento. Ou pelo final cronológico, pela morte. Ou ainda, in media res (num ponto qualquer, entre os dois polos balizadores da vida).

Pois bem. Um lustro depois da sétima década, notei que os agentes de minha morte puseram-se em marcha. Acordei, certa manhã, com dores difusas e migratórias, indisposição generalizada e um abafamento de sapo debaixo da pedra. Se meu corpo fosse uma orquestra, tudo eram dissonâncias. Em mim, o que não doía, estava dormente. O que não estava lerdo estava acelerado demais. Não sabia bem se estava apavorado ou com uma preguiça paralisante. Ressalto que o confuso mal-estar não chegou de repente. Instalou-se devagar, que nem sedimentos nas articulações e, naquela manhã, atingiu o ápice, no nível do insuportável.

Pensei em relatar o episódio para minha mulher. Achei melhor, não. Ela me colocaria imediatamente no carro e me levaria ao médico, à força. Se não pela força dos braços, pela força dos argumentos e da brabeza, com a voz esganiçada que usa nessas circunstâncias. Todavia, ao me ver entre prostrado e ligeiramente convulsivo, ela veio averiguar o que se passava comigo. Minhas têmporas, febris e o abdômen, gelado. Com preguiça de inventar uma desculpa, eu disse que sentia uma coisa estranha, mas não sabia bem o que era.
— Velho, quando sente coisas estranhas, pode ser a morte rondando —, disse-me e já foi se arrumar para irmos ao médico. Eu, de chinelo, bermuda e camiseta. Pouca roupa até ajuda nas escutas e sondagens do médico.

O geriatra, já nos esperava. Depois de ouvir meu lacônico relato e a prolixa narrativa de minha mulher, pediu-me enorme bateria de exames. De esforço, de sangue, de excrementos, de imagens, de cultura, de biópsia, de ressonâncias e muito mais. Semana dura, duríssima. Fui virado pelo avesso em procedimentos entre inocentes, invasivos e até penosos. Meu sentimento de mal-estar difuso em nada cedia. Pensei em suicídio. Mas logo me lembrei de que sou pusilânime e não há perrengue que me faça cometer um ato insano, contra mim mesmo.

Quinze dias depois, retornamos ao consultório com o calhamaço de resultados debaixo do braço. Uns cinco quilos ou mais. O doutor atendeu-me entre sorridente e brincalhão, parecendo que tinha todo o tempo do mundo para mim. Disse-me que eu nem parecia ter a idade que tinha.

Pintura de Edvard Munch

– Pareço ter o dobro, né, doutor?

– Duas décadas a menos, meu jovem! Isto sim!

– Ele anda tão pra baixo, doutor, que não recepciona nem elogios – minha mulher alegou.

– Tem muito moço dessa geração, que amava os Beatles e os Rolling Stones, que anda mesmo com o farol baixo. Mas vamos levantar o astral do moço. Ah, se vamos! Ele ainda vai escrever muitos livros.

Na tentativa de aplacar meu marasmo, o médico olhava cada exame, ticando e fazendo comentários, que no entendimento dele, eram positivos.

– Hum! Legal! Nesse não deu nada! Beleza pura! Resultado de garoto.

Olhou criteriosamente todos os exames. Não achou nada digno de nota, garantiu-me. Perguntou à minha mulher se eu estava muito fissurado por notícias. Pois as notícias deixariam o mundo com a aura escura. Ela confirmou que eu estava aprisionado em uma bolha. Só não saberia dizer se de péssimas notícias ou de péssimas falsas notícias.

– Quando não é na TV é no celular.

– Para ser sincero, metade do mundo está louca e a outra metade, bestificada de tanta loucura – disse, sentencioso. – Você realmente não tem nada, meu rapaz, a não ser essa fissura por más notícias.

Para não restar dúvidas, ele me apalpou outra vez. Tomou o pulso, aferiu a pressão, mandou-me respirar fundo, com o estetoscópio mudando de lugar sobre meu tórax, depois sobre as costas. Uma vez, duas, três.

– Pela semiologia médica, tudo isso é coisa de sua cabeça. Contrariedades e decepções somatizadas.

Enquanto isso, eu pensava que essa era a pior notícia que poderia receber. Se fosse diagnosticado com algum incômodo fisiológico, mesmo que grave, a medicina teria certamente uma proposta de tratamento e expectativas de cura. Poderia ser cirurgia, transplante, quimioterapia, amputação, sei lá. Qualquer coisa. Um tratamento que revertesse meu estado de prostração. Ou uma paliação, que me proporcionasse algum nível de vida, até que a Sem-Graça buscasse o pacote de sua encomenda.

– Meu amigo, você tem que tomar cuidados com queda de avião e outros incidentes traumáticos. Por causas naturais, você não morre tão cedo. Aliás, você sabia? Quem chegou aos 75, com seu estado de higidez, tem cacife para chegar aos 110, naturalmente. E quem chegar aos 110, estará salvo em vida. Até lá, a ciência terá descoberto o elixir da longa, longuíssima vida, empurrando a morte para longe, e você poderá viver mais do que 900 anos, feito Matusalém. A história de Matusalém não é um fato do passado, mas uma profecia, cujo tempo chegou. Agora imagine, quanto recurso será descoberto pela ciência nos próximos nove séculos! Será a eternidade, sem o sofrimento de fazer a passagem.

Por pouco, não saltei do marasmo para o pânico. Talvez, por falta de propulsão. Se eu estava com dificuldades para tolerar esse mundo cinzento, por mais cinco minutos, imagine 110 anos, 900 ou eternamente? Credo em cruz! Vendo-me em total desânimo, o médico ponderou:

– Vou receitar um remedinho para estimular a secreção de endorfina.

– Sou intolerante a endorfina, doutor.

– Espirituoso, hein? Já tá melhorando. Você vai tomar direitinho, hein! E precisa colaborar. Desligue o celular e a televisão. Fique longe dos pessimistas. Nada de conversas com pessoas radicais. Vá com a patroa ao shopping, chame os netos para passear no parque, ou na chácara, tome uma cervejinha à tarde, no boteco de sua preferência, com os garotos de sua geração, ouvindo rock, arranje uma pescaria com amigos aficionados. Volte a fazer as coisas de que você gostava, antes de cair nessa vala de tristeza. Lembre-se: você tem uma saúde de ferro, uma carreira bem-sucedida, uma bela família, boas condições financeiras, mora bem, na melhor cidade, do melhor país. Nem os príncipes de Gales têm tanta bizarria.

Minha máxima reação foi levantar levemente o sobrolho direito, em sinal de uma ironia descrente.

Já nos despedindo, e agradecendo, minha mulher me segurou pelo braço, caso contrário, eu não teria disposição para deixar o consultório, mesmo que não me agradasse aquele ambiente nem a conversa do médico. Passamos na farmácia e ela aviou a receita. Ao chegarmos em casa, enfiou-me o remédio goela abaixo. E fui deitar um pouco, no limite da exaustão e das dores difusas.

Talvez a morte, realmente, possa chegar pelas vias clandestinas, a um doente sem doenças.

Sempre imaginei a morte como o fim de um ciclo. Depois de cumpridos certos quesitos, o corpo procede ao desligamento, em sequência, de suas funções. Desliga os sistemas circulatório, respiratório, pensante. Encerra-se o centro gerador de desejos e necessidades. Desliga-se a consciência e inicia imediatamente o processo de desentranhamento de seus elementos constitutivos, químicos, físicos e biológicos, para que possam reintegrar à natureza, agrupando-se aos elementos de sua espécie, ou em composições diversificadas. A morte não é um final, mas uma passagem, uma dissolução, um espalhamento, um folguedo da natureza.

Há muito, essa percepção persegue-me. No entanto, às vezes, admito que a morte ainda não foi totalmente decifrada e cada um pode supô-la como lhe convier. Ou seguir entendimentos diversos já supostos por outrem. Libero-me para pensar que tenho uma força vital para além das reações químicas operadas pelo corpo físico e que essa chama desconhece as limitações do tempo e do espaço. Algo mais medonho do que a superstição do médico de que a ciência ainda vai nos tornar eternos em vida.

Quando solto meu pensamento nessa vereda, sou tomado pela concepção mágica de que, se é um desígnio da potência universal, o cavalo cai e o cavaleiro continua a cavalgar. Quem sabe, eu possa, munido de minhas vibrações imanentes, continuar existindo em toda plenitude, consciência total e ampla, sem as amarras e as traves das necessidades físicas, sem os afetos degradantes da inveja, raiva, ambição, mágoas, ressentimentos etc. Uma vida só de levezas e mistérios gozosos. Quem sabe, exista uma chama imortal em meu corpo que se agregará à potência universal e infinita?!

Foi nesse estado de desapego, resignação e bondade absoluta que assisti ao meu velório, pois, naquela mesma noite em que tomei o tal remédio para liberar endorfina, meu corpo desligou-se e a substância, dele emanada, em forma de consciência energética, solta num ambiente insólito, desconhecido pela geografia, não mais sujeito às leis da física nem da química, passou a constituir-se no que agora sou.

Primeiramente, não me surpreendeu a desenvoltura de minha mulher. Com a mesma habilidade com que me levou ao médico, começou a providenciar as coisas para meu velório e enterro. De imediato, disse, a si mesma e a todos que apareceram para chorar, de corpo presente, que, para mim, foi um descanso. Eu já havia desapegado da vida, perdido o encanto, os laços e conexões com o mundo. E que o descanso eterno era mesmo o que eu buscava.

Vi pensamentos de amigos (agora eu podia vê-los, sem a mediação dos sentidos) que me deviam dinheiro, à base da confiança, dizendo que não iriam falar de seus débitos aos herdeiros. Mas pouco depois achegou-se à viúva, abraçando-a, dizendo que o céu estava em festa, porque eu era uma das pessoas mais generosas que já passou pela Terra. Pessoas que chegaram chorando, mais por fingir do que por sentimentos, logo estavam nos arrabaldes do velório, contando piadas e histórias escabrosas que, supostamente, passamos juntos na juventude. Vi amigos do peito fazendo comentários inconvenientes:

– Essa viúva ainda dá um caldo, velho!

Meus filhos, sempre amorosos e cordiais, já começavam a discutir a herança com animosidade, a tal ponto que minha viúva precisou intervir:

–Pelo amor de Deus, gente! Ao menos respeitem o ambiente do velório. Que coisa mais grosseira e desagradável! O defunto nem esfriou vocês já estão na esgrima da herança!

O geriatra também foi ao velório e, para manter a pose de bom profissional, disse que havia percebido que eu estava realmente péssimo, mas que a Medicina, estágio no atual, não dispunha tratamento mais eficaz.

Agora, tudo isso eu via sem os sumos adstringentes da carne, sem os venenos dos sentimentos do mundo, compreendendo que a vida é mesmo um liquidificador feroz, onde todas as matérias, emoções e sentimentos são moídos no mesmo gral. Onde o orgasmo é um prazer comparativamente grosseiro. Percepções que só podem ser realmente alcançadas numa perspectiva de quem está de fora, do jeito que me encontro.

Por fim, desde o instante em que fui exonerado de minha indumentária corpórea, sou uma água-viva, sem peso nem pesares, flutuando na substância infinda da consciência pura e universal. Nutrindo-me da endorfina basilar e eterna que rege o prazer depurado, diamante sem ganga do mundo secreto, agora, inteiramente revelada a meus suprassentidos.

A terra, que recai sobre meu corpo, não pesa sobre mim.

Edival Lourenço é poeta, romancista e contista.

[Leia o conto de Solemar Oliveira (https://tinyurl.com/fxp22phd) sobre sua própria morte.]

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