Documentário aborda a colheita e venda de plantas sagradas

A vida nunca foi fácil para Marivalda Alves dos Santos, 36 anos, moradora da Fazenda Santa Rosa, no Oiteiro, zona rural de Simões Filho, que três vezes por semana se levanta às 4h da manhã e duas horas e meia depois está dentro de um ônibus que a leva para Dias d’Ávila e outras cidades da Região Metropolitana de Salvador. Ela cata folhas que são vendidas na Feira de São Joaquim e usadas pela população baiana para banhos, remédios e rituais.Marivalda, conhecida como Diu, cobra R$ 0,80 por uma porção, R$ 1 se for mastruz, e ganha em torno de R$ 500 por mês. Entre as folhas, figuram erva-cidreira e quioiô, adequadas para chás. Mas também espécies de uso medicinal, como a alternathera brasiliana, conhecida como folha de benzetacil ou penicilina, largamente utilizada no combate a inflamações e infecções.Já a folha de guiné é rica em flavonóides, substância que combate as inflamações. Esse vegetal também é utilizado para combater o reumatismo e tem fins espirituais, como banhos de proteção. E a folha de levante, que tem propriedades antioxidantes e diuréticas, mas também usada na umbanda e no candomblé em banhos de proteção. Uma ruma de folhas espalhadas pela vegetação nativa da Mata Atlântica que têm como efeito secundário um pequeno alívio no sofrimento financeiro das mulheres do Oiteiro.Para Diu, por exemplo, cuidar da casa tem sido uma tarefa ainda mais dura, depois que seu irmão, dois anos mais novo, que mora com ela, teve uma das pernas amputada, em decorrência de problemas de circulação sanguínea.Não é a vida dos sonhos para essa mulher que ainda lamenta ter sido obrigada a abandonar os estudos no fim do ensino fundamental. Mas é o que lhe permite, com muito sacrifício, fazer algum dinheiro para sobreviver. “Eu gostaria de ter outro trabalho, de terminar meus estudos”, conta a catadora, que não tem religião, mas de vez em quando vai a uma igreja cristã.Filme

A equipe do documentário Jornada das Folhas

|  Foto: Divulgação

Há alguns anos, as histórias de Diu e de outras mulheres da comunidade de Oiteiro, em Simões Filho, chamou a atenção de um jovem vizinho, Tailson Souza, que à época era estudante de jornalismo. O universitário conversou com a sua professora de Técnicas de Imagem e Direção e de Oficina de Sonorização, a cineasta Ravena Melo, que comprou a ideia de fazer um filme sobre as mulheres.Juntamente com o também cineasta Emerson Kilendo, a dupla produziu o documentário Jornada das Folhas, um retrato da presença feminina em uma atividade fundamental para a cultura afro-baiana.Muitas das catadoras sequer têm vínculos com o Candomblé, e algumas professam outras religiões. Somente em Oiteiro, há cerca de 20 mulheres que catam folhas, localmente e em outros municípios, e depois viajam a Salvador uma vez por semana para comercializá-las com os feirantes. Algumas das catadoras são menores de idade.”Eu cresci vendo essas mulheres subindo e descendo, catando folhas. E vi o desenvolvimento delas”, afirma Tailson, referindo-se ao fato de que através do comércio de folhas algumas delas ergueram casas, ainda fazem reformas e ampliações, e conseguem comprar móveis e alimentação.Mas o jornalista e produtor de cinema pondera que ainda há muito a conquistar. “É uma comunidade vulnerável, que tem suas necessidades. Elas não têm escolaridade completa e algumas delas sobrevivem há mais de 40 anos dessa colheita de folhas”, assinala Tailson.O jornalista destaca a predominância feminina na atividade. “Quase todo o trabalho é feito por mulheres. Pouquíssimos homens catam. É uma experiência maravilhosa. São histórias fantásticas que elas vão passando para a gente”, declara o produtor. Como o dia em que uma das catadoras foi mordida por uma cobra no mato, ficou desacordada por um tempo e não retornou para casa no final do dia.”A família a teve como desaparecida, porque ela não deu sinal de vida. Ela foi resgatada de helicóptero. Uma história muito forte”, conta Tailson. Um risco que as catadoras correm para vender uma porção de folha por menos de R$ 1.Muita vontadeA cineasta Ravena Melo escreveu o projeto do filme em 2022. No ano seguinte, o texto foi contemplado pelo edital da Lei Paulo Gustavo Bahia, para execução em 2024. “É um trabalho que nasce com muita vontade de que seja realizado. Eu o vislumbro há bastante tempo”, afirma Ravena.O processo de pesquisa para o projeto incluiu diversas idas da equipe de produção a Oiteiro. “Ao longo dessas visitas, a gente foi tendo experiências muito enriquecedoras. Tanto nos saberes sobre as folhas quanto a descobrir mesmo esse universo, que a gente imaginava de uma forma e à medida em que fez a pesquisa foi ganhando outros contornos”, diz a diretora.Nesse momento, a equipe está na fase de gravações, com cenas das catadoras no mato e também com as negociações com os feirantes. “Tem sido um aprendizado muito grande”, diz Ravena, acrescentando que as pessoas sempre ouvem falar das folhas do Candomblé, mas ninguém sabe de onde elas vêm.”Elas estão nesse ofício há muitos anos, e há muitos anos a gente tem essa relação com as folhas só pelos feirantes. A gente não vê quem está na base dessa cadeia econômica”, comenta a diretora.O filme Jornada das Folhas deve integrar a uma série chamada Economia do Sagrado, com outros três episódios ainda a serem escritos. Neles, devem ser abordados temas como roupas e acessórios usados no Candomblé, além do uso das palhas e do barro. O filme vai ser exibido, inicialmente, ao público na comunidade de Oiteiro. Mas ainda não há previsão de difusão na TV ou nos serviços de streaming.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.