O repórter Fabio Victor, da “Folha de S. Paulo”, publicou excelente reportagem sobre o mais celebrado escritor curitibano, sob o título de “Primeira biografia de Dalton Trevisan mostrará ‘intimidade da obra’ do autor”.
Dalton Trevisan (1925-2024 — viveu 99 anos) é, possivelmente, o maior contista patropi. Seus contos foram ficando, com o tempo, cada vez mais concentrados. Ainda assim, dizendo muito. Era uma espécie de Tchékhov das miniaturas.
Há um deslize, mínimo, na fala do biógrafo, o ensaísta, jornalista e tradutor Christian Schwartz. Dele, se falará adiante.
Trabalhando há dois anos na biografia, Schwartz conseguiu um feito, que parecia impossível: obteve “acesso à correspondência completa e a parte dos diários mantidos por décadas pelo autor, além de ter conseguido depoimentos” do prosador.
Ainda sem título (sugiro: “Dalton Trevisan — Nem Vampiro Nem Maldito” ou “Dalton Trevisan — O Tchékhov das Américas”. E, afinal, Trevisan e Tchékhov têm oito letras, começam com “t” e terminam com consoantes), a biografia, em “fase final”, sairá, no segundo semestre deste ano, pela Editora Todavia.

Quando procurou a agente literária de Dalton Trevisan, Fabiana Faversani, sugerindo que tinha interesse no acervo pessoal do escritor, Schwartz ficou surpreso. Não colocaram nenhum obstáculo.
Ante o acesso facilitado, Schwartz perguntou para Fabiana Faversani: “Por que você está aceitando conversar comigo nesses termos, sempre pareceu tudo tão fechado? Não é possível que eu seja o primeiro a pedir acesso às coisas. Ela falou: ‘Sim, você é o primeiro. Ninguém tinha perguntado se podia’”.
Dalton Trevisan, propagado como o Vampiro de Curitiba, era apresentado pela imprensa como inacessível e escritor que fugia de jornalistas e biógrafos como o diabo foge dos bancos, quer dizer, da cruz.
De cara, Schwartz conseguiu consultar a correspondência de Dalton Trevisan, que carteou com, entre tantos outros, o poeta Carlos Drummond de Andrade, o memorialista Pedro Nava e o cronista Rubem Braga. Outra parte das missivas, pequena, pode ser examinada na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.

De acordo com Fabio Victor, “a ideia inicial do pesquisador era reconstituir o processo de criação de Trevisan a partir dos interlocutores literários do contista”.
Porém, com acesso total à correspondência — 2.297 cartas —, “entre enviadas e recebidas”, diários e depoimentos, o pesquisador mudou de rumo (leia abaixo). Dalton Trevisan e o escritor e jornalista Otto Lara Resende trocaram 600 missivas. Schwartz disse à “Folha” que os escritos “constituem o cerne do diálogo sobre o fazer literário”.
Além das cartas, Dalton Trevisan escrevia todos os dias no seu diário. “Resolvi apostar nesse acervo de documentação pessoal para escrever a biografia.”
O biógrafo descobriu que Dalton Trevisan, na leitura dos livros, era meticuloso. “As marginálias dos livros dele são uma maravilha, porque ele sublinhava e anotava tudo. A história de leitor dele é uma história à parte.” O escritor deixou, em sua casa, 2.373 livros.
Dalton Trevisan, a partir de perguntas de Schwartz, concedeu depoimentos a Fabiana Faversani. O que, por certo, enriquecerá a biografia. Afinal, ninguém, aparentemente, falou com ele antes.

Schwartz vai contestar, na biografia, a ideia do escritor recluso, distante — muso de uma torre de marfim. De fato, era “discreto e recluso”, mas convivia bem com conhecidos e, talvez, desconhecidos. Saía de casa todos os dias e falava com várias pessoas. Às vezes, “rapinava” suas histórias e as transformava em contos magníficos.
Schwartz vai contornar cidade em que viveu Trevisan?
Mas, afinal, qual é o equívoco de Schwartz? O próprio biógrafo se encarrega de apresentá-lo, com todas as letras.
De acordo com Fabio Victor, “Schwartz optou por não entrevistar pessoas do convívio do contista. Argumenta que quis evitar as armadilhas em torno da surrada mística pessoal do dito vampiro e que sua prioridade é a obra de Trevisan. Assim, afirma, o acervo e os depoimentos do escritor dão conta de um trabalho que, por isso mesmo, terá forte componente ensaístico”.
Schwartz comete um deslize que talvez seja grave e poderá levar, publicada a biografia, a contestações. Há dois problemas na sua fala. Primeiro, se fiar-se apenas na documentação de Dalton Trevisan, sobretudo se for lida acriticamente, corre o risco de escrever uma hagiografia (no que, por sinal, não acredito, dada a formação rigorosa do pesquisador).

Segundo, se não ouvir pessoas que conviveram com o escritor, como amigos e meros contatos, pode lhe escapar a vida do homem, suas ligações com a sociedade local. Faltará, quem sabe, o “colorido” humano, as nuances, contradições. As histórias que tornam uma biografia mais legível, por assim dizer.
Ao priorizar o exame da obra, destacando a vida apenas a partir da fala de Dalton Trevisan — suas cartas, diários e depoimentos —, talvez Schwartz consiga flagrar o escritor, mas não o homem que escreveu a obra. Uma biografia só é completa quando, além de examinar a obra, vasculha a vida do indivíduo, e a partir de visões múltiplas.

“Toda biografia literária a meu ver sempre é um pouco um ensaio também”, assinala Schwartz. O crítico literário tem razão. Mas só em parte. Os leitores, quando vão ler uma biografia, querem mais do que um ensaio. Exigem uma biografia, um estudo da história do escritor que inclua, claro, a obra, mas não exclua a vida.
Não estou sugerindo que o biógrafo vai excluir a vida (seria impossível, lógico), e sim que precisa ouvir pessoas cruciais do entorno de Dalton Trevisan. Possivelmente, há boas (e verdadeiras) histórias para colher e contar.
Antes de colocar o ponto final, Schwartz deveria consultar ou reconsultar ao menos duas biografias modelares: “Nelson Rodrigues — O Anjo Pornográfico” (Companhia das Letras, 464 páginas), de Ruy Castro, e “Oswald de Andrade — Mau Selvagem” (Companhia das Letras, 528 páginas), de Lira Neto. Talvez ainda dê tempo de corrigir um possível erro de percurso.
Consultar quem já escreveu biografias exemplares, como Ruy Castro e Lira Neto, mais do que exercício de humildade, é uma maneira de não cometer erros crassos. Oxalá, Schwartz — um crítico que leio e admiro — recue e ouça os curitibanos que conviveram, durante décadas, com Dalton Trevisan. A apreciação e apresentação do contexto em que viveu e escreveu o prosador certamente ficarão muito mais ricas e precisas.
Ruy Castro e Lira Neto escreveram dois “guias” seminais para quem quer escrever biografias. Vale a pena consultá-los.
Por fim, desde já, coloco a biografia que está sendo escrita por Schwartz na lista dos livros imperdíveis de 2025. Por causa de Dalton Trevisan, sobretudo, mas também do autor, que é um crítico, ensaísta e tradutor categorizado.
(Leia breve “resenha” de livro de Miguel Sanches Neto sobre Dalton Trevisan: https://tinyurl.com/y7cpxhvu)
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