Canais de água ameaçam a vida selvagem mundial

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Afogamentos letais de animais em canais de água para irrigação e outros fins foram observados em várias nações. As regiões secas e semissecas do planeta são ainda mais vulneráveis a esses prejuízos, mas existem alternativas para proteger a vida selvagem.

Cientistas como Diego Gallego-García toparam com animais silvestres mortos por afogamento dentro e ao redor de um canal de água para irrigação e abastecimento humano pesquisando aves no norte da Argentina. As perdas registradas foram impressionantes. 

Mais de 200 animais de 35 espécies morreram em seis meses, mostra um artigo na revista “Biological Conservation” assinado por García e José Sarasola. Eles são ligados ao Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas e à Universidade Nacional do Pampa.

Os afogamentos ocorreram no “Canal de la Pátria”, cujas paredes íngremes de concreto cortam 250 km do Gran Chaco. Trata-se do mais biodiverso sistema florestal contínuo da América do Sul, depois da floresta amazônica. 

Vídeo: Patas y Patitas / Divulgação

As vítimas incluem variadas espécies, inclusive ameaçadas de sumir do mapa, como 38 tamanduás-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), um grande comedor de formigas e cupins típico das savanas sul-americanas.

O estudo registrou igualmente que o número de mortes de animais caiu ao longo dos meses analisados, mas isso sinaliza algo ainda mais grave.

“Podemos estar testemunhando a defaunação [extermínio rápido da fauna] ao longo do canal. É muito grave para a conservação das espécies silvestres e um problema até agora mantido em silêncio”, ressalta García. Os prejuízos estariam disseminados no país, mas não sendo avaliados.

Ao menos 6 mil km de canais cruzam áreas áridas e semi-áridas argentinas. O concreto danificado dessas estruturas é muitas vezes substituído por uma escorregadia lona plástica que dificulta o escape dos animais. Isso as reforça como “sumidouros de vida selvagem”, alertam os pesquisadores.

O Canal de la Pátria (topo), adultos e crias de animais afogados ou dentro da estrutura, incluindo espécies muito ameaçadas de extinção, como o tamanduá-bandeira. Fotos: Centro para el Estudio y Conservación de las Aves Rapaces en Argentina (Cecara)
O Canal de la Pátria (topo), adultos e crias de animais afogados ou dentro da estrutura, incluindo espécies muito ameaçadas de extinção, como o tamanduá-bandeira. Fotos: Centro para el Estudio y Conservación de las Aves Rapaces en Argentina (Cecara)
O Canal de la Pátria (topo), adultos e crias de animais afogados ou dentro da estrutura, incluindo espécies muito ameaçadas de extinção, como o tamanduá-bandeira. Fotos: Centro para el Estudio y Conservación de las Aves Rapaces en Argentina (Cecara)
O Canal de la Pátria (topo), adultos e crias de animais afogados ou dentro da estrutura, incluindo espécies muito ameaçadas de extinção, como o tamanduá-bandeira. Fotos: Centro para el Estudio y Conservación de las Aves Rapaces en Argentina (Cecara)

Afogamentos globalizados

Afogamentos mortais de animais também ocorreram num sistema de irrigação com apenas 1,5 km ligado à área úmida protegida Bordo Las Maravillas, no município de Toluca, no México, entre as Américas do Norte e Central. 

Um estudo publicado no periódico científico “PeerJ” contou 227 animais afogados de uma dezena de diferentes espécies, incluindo aves e anfíbios e especialmente mamíferos e répteis. O levantamento durou 2 anos. 

No local, canais com paredes retangulares de concreto são controlados por comportas, onde animais também ficam presos, conta Hublester Domínguez-Vega, um dos autores da pesquisa. 

“O sistema é pequeno, mas tem impactos elevados sobre tantas espécies”, destaca o doutor em Ciências Agropecuárias e Manejo de Recursos Naturais pela Universidade Autônoma do Estado do México (UAEM).

Para ele, é generalizado o desconhecimento global sobre como a construção e a operação de canais de água afetam a biodiversidade. “Estamos só arranhando a superfície dessas questões”, avalia.

Com 18 ha, o bordo “Las Maravillas” é um centro de biodiversidade dentro do campus “El Cerrillo” da Universidade Autônoma do Estado do México. Imagem: Google Earth
Com 18 ha, o bordo “Las Maravillas” é um centro de biodiversidade dentro do campus “El Cerrillo” da Universidade Autônoma do Estado do México. Imagem: Google Earth

Nativa do Deserto de Sonora, nos Estados Unidos e México, a antilocapra (Antilocapra americana sonoriensis) é o mais veloz mamífero terrestre do norte americano, alcança 80 km/h. Isso não o livrou de morrer em canais de água.

Os afogamentos foram registrados por Paul Krausman, professor de Ciências da Vida Selvagem e da Pesca na Universidade do Arizona e um dos raros pesquisadores atentos a tais impactos na fauna selvagem.

Seus estudos mostram as mortes de cervos e outros animais em sistemas como o All-American Canal. Seus 130 km ligam a Barragem Imperial, no Rio Colorado, a nove cidades e 2 mil km2 irrigados no estado da Califórnia.

Para Krausman, qualquer perda por afogamento nos canais prejudica a biodiversidade, sobretudo de espécies ameaçadas. “Os canais são apenas um entre muitos desafios que os animais enfrentam”, diz.

“Se esses prejuízos são negligenciados ou desconhecidos em outros países, é provavelmente porque não foram estudados”, alerta o cientista. Pois, a área mundial a ser avaliada é imensa e não para de crescer.

A irrigação mundial cobre de 2,55 milhões de km2 a 3,05 milhões de km2, pouco menor que o território da Índia. Os números são da FAO, sigla em inglês da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação.

Em tons de azul, a área mundial equipada para irrigação. Fonte: Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO)
Em tons de azul, a área mundial equipada para irrigação. Fonte: Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Arte: Gabriela Güllich
Em tons de azul, a área mundial equipada para irrigação. Fonte: Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO)
Em tons de azul, a área mundial equipada para irrigação. Fonte: Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Arte: Gabriela Güllich

Em países do outro lado do Oceano Atlântico, a situação não parece menos fatal à vida selvagem. 

Estudos científicos contaram 538 mamíferos selvagens e domésticos mortos por afogamento em canais na Espanha, em 5 anos, bem como apontaram que anfíbios seriam as maiores vítimas dessas estruturas no país europeu.

Outros trabalhos identificaram o afogamento em canais de água como a segunda maior causa não natural de mortes de javalis (Sus scrofa) na Espanha. A primeira são atropelamentos rodoviários.

No canal de Los Payuelos, na região de León, há repetidos afogamentos de corças (Capreolus capreolus), parentes dos cervos e veados. Só num episódio há poucos anos, 28 desses animais morreram. 

Agricultura irrigada ao lado de trecho do All-American Canal próximo a Winterhaven, na Califórnia. Foto: Ted Wood/The Water Desk/Creative Commons
Agricultura irrigada ao lado de trecho do All-American Canal próximo a Winterhaven, na Califórnia. Foto: Ted Wood/The Water Desk/Creative Commons
Através de uma região do Arizona, o All-American Canal é uma grande fonte artificial de água a céu aberto atraindo animais selvagens. Imagem: Nasa/International Space Station
Através de uma região do Arizona, o All-American Canal é uma grande fonte artificial de água a céu aberto atraindo animais selvagens. Imagem: Nasa/International Space Station

Afogamentos também ocorreram nos canais de Arriola e Villalaco, no centro-norte espanhol. Estruturas similares são encontradas no país todo, para irrigação, abastecimento de pessoas ou transporte. 

Espécies menores são as que mais morrem nesses sistemas, diz Alberto Fernandez Lopez, do Programa de Água do WWF-Espanha. “Faltam investigações e ações sérias sobre o problema”, alertou o doutor em Biologia pela Universidade Complutense de Madri.

No leste da Península Ibérica, Portugal também tem canais mortíferos para os animais selvagens. 

Um estudo veiculado pela revista “Basic and Applied Ecology” registrou mamíferos e carnívoros afogados em sete canais no sul do país, com 12 km em média cada um.

As vítimas incluem o felino gineta (Genetta genetta) e os mamíferos furão (Mustela putorius), mangusto (Herpestes ichneumon), lontra (Lutra lutra), texugo (Meles meles) e raposa-vermelha (Vulpes vulpes).

As mortes aconteceram apesar de os canais de concreto serem teoricamente isolados por cercas de arame com 1,5 m de altura e outros 50 cm enterrados. 

“Os resultados são relevantes à medida que mais canais de irrigação são construídos para lidar com o aumento das secas e a maior demanda de alimentos”, destacam os cientistas, das universidades de Évora e de Lisboa e da Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (Edia).

Há mais de 37 mil km2 irrigados em Portugal e na Espanha, indica a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). A área é similar à metade do Panamá ou a ¼ do estado do Ceará.

Corças (Capreolus capreolus) que morreram afogadas num canal de água para irrigação, na Espanha. Foto: WWF-Espanha/Divulgação
Corças (Capreolus capreolus) que morreram afogadas num canal de água para irrigação, na Espanha. Foto: WWF-Espanha/Divulgação

Ligando pontos

Rodovias, ferrovias e canais artificiais de água complicam a movimentação e matam animais atropelados e afogados. Seu “efeito barreira” também pode isolar populações, complicar a reprodução e a alimentação da fauna selvagem. 

“Os prejuízos rodoviários são bem mais visíveis. As pessoas passam de carro e podem ver muitos dos animais mortos”, lembra Edgar van der Grift, pesquisador no Departamento de Ecologia Animal da Universidade de Wageningen, na Holanda.

O cenário indica que reduzir a mortalidade de animais e os prejuízos à conservação da biodiversidade em canalizações de água demandará intensos esforços científicos, legais, técnicos, econômicos e ações urgentes dos governos mundiais.

“Embora os canais sejam uma das principais causas de mortalidade direta de vida selvagem, eles recebem pouca atenção”, constata Hublester Domínguez-Vega, doutor em Ciências Agropecuárias e Manejo de Recursos Naturais pela Universidade Autônoma do Estado do México.

O problema cresce de carona na tendência mundial de se usar mais irrigação artificial para produzir alimentos frente ao aumento da população e aos efeitos acelerados da crise climática, como menos chuvas, mais calor e secas. 

“As savanas são mais suscetíveis a esses impactos e a maiores prejuízos à vida selvagem”, afirma Morati Mpalo, do Departamento de Ciências da Terra e Meio Ambiente da Universidade Internacional de Ciência e Tecnologia de Botsuana.

Ele é um dos autores de artigo publicado na revista “Land” indicando que as fontes artificiais de água não só afogam animais selvagens como também desequilibram ambientes naturais. Os estudos ocorreram no Chobe Enclave, ao norte do país africano.  

“Esse fornecimento contínuo de água perturbou uma paisagem sensível à seca, afetou a vida selvagem e a heterogeneidade da vegetação, indicando que provoca alterações ecológicas nas savanas”, ressalta Mpalo.

Diante disso, Rodrigo Gerhardt, da ong Proteção Animal Mundial no Brasil, ressalta que a soma de prejuízos ecológicos dos sistemas de irrigação é um “escândalo mundial” que “precisa sair das sombras”.

“O custo da negligência quanto aos prejuízos da atividade está aparecendo nas mortes de incontáveis espécimes nativos e domésticos, no desequilíbrio dos ecossistemas e no agravamento da crise do clima”, salienta.

A savana africana estudada por Mpalo e outros cientistas. Regiões como essa e o Cerrado sul-americano são mais suscetíveis a impactos da crise do clima, ao aumento da irrigação artificial e decorrentes prejuízos à fauna selvagem. Foto: Morati Mpalo/Arquivo Pessoal
A savana africana estudada por Mpalo e outros cientistas. Regiões como essa e o Cerrado sul-americano são mais suscetíveis a impactos da crise do clima, ao aumento da irrigação artificial e decorrentes prejuízos à fauna selvagem. Foto: Morati Mpalo/Arquivo Pessoal

Driblando impactos

Diego Gallego-García, do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina (CONICET), avalia que a única salvação real para a vida selvagem é cobrir totalmente os canais de água.

“É uma questão emergencial. Eles são máquinas de mortes silenciosas de animais silvestres, mundialmente ainda muito subestimadas”, destaca o pesquisador, também ligado à Universidade Nacional do Pampa.

Cobrir canais abertos também reduziria o “efeito barreira”, um problema que pode ser reforçado por outros meios para conter os afogamentos de animais, como cercas junto a estruturas eventualmente com centenas de quilômetros.

“Pontes, túneis e valas ajudam animais a cruzar sobre canais de água, mas não usados por todas as espécies, não são soluções efetivas para as mortes e a fragmentação de ambientes naturais”, acrescenta García. 

Professor de Ciências da Vida Selvagem e da Pesca na Universidade do Arizona (Estados Unidos), Paul Krausman lembra que é igualmente possível facilitar que os animais saiam de canais e reservatórios. 

“Rampas, degraus e estruturas com paredes abrasivas permitem que muitos dos animais que caíram escapem da morte”, diz.

Arte: Gabriela Güllich
Artes: Gabriela Güllich

Nesse sentido, tentar salvar vidas animais em cursos d’água artificiais e naturais é uma política adotada na Holanda, país loteado por canais para irrigação, abastecimento público e navegação. 

“Os impactos dos canais podem parecer pequenos, mas afogamentos de espécies com populações menores podem impactar gravemente sua conservação”, explica Edgar van der Grift, da Universidade de Wageningen.

No país, canais de água são equipados com redutores de velocidade e rampas para facilitar a saída da fauna silvestre, doméstica e até de pessoas. “Eles são instalados ao longo e em ambos os lados dos canais”, explica.

A savana africana estudada por Mpalo e outros cientistas. Regiões como essa e o Cerrado sul-americano são mais suscetíveis a impactos da crise do clima, ao aumento da irrigação artificial e decorrentes prejuízos à fauna selvagem. Foto: Morati Mpalo/Arquivo Pessoal
Exemplos de estruturas para facilitar a saída de animais e pessoas de canais de água na Holanda. Fotos: Edgar van der Grift/Arquivo Pessoal

Domínguez-Vega (Universidade Autônoma do Estado do México) diz que conter prejuízos da irrigação a céu aberto exige avaliações sérias em cada região e pode incluir até traçados dos canais menos danosos aos animais. 

“É preciso maior conhecimento antes de qualquer medida, até para não atender agendas de curto prazo com falsas soluções”, avisa. “Mas, não há uma solução única para a letalidade dos canais”, reconhece. 

Um cenário que sem dúvida demanda uma repaginada completa da irrigação mundial, para equilibrar os benefícios socioeconômicos da atividade com a proteção de ambientes e espécies nativas. 

“Defender um uso correto não é ser contra a irrigação. A agricultura e outras atividades podem usar água sem matar animais silvestres”, diz Gallego-García (Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina).

Os governos de México, Argentina, Portugal, Espanha e Botsuana não informaram se monitoram e agem em seus territórios contra afogamentos mortais de animais silvestres em canais de água para irrigação e outros usos até a publicação desta reportagem. 

O FSW, sigla em Inglês do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos, informou que há propostas para instalar redes e alertas em eclusas de navegação e outros controles de água na Flórida e em Porto Rico para reduzir trombadas, ferimentos e esmagamentos do ameaçado peixe-boi-marinho.

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