Opaco, ‘Aos Pedaços’, de Ruy Guerra, vai pouco além da bela imagem

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(FOLHAPRESS)

Eurico é um homem estranho. Bígamo, casou duas vezes, ao mesmo tempo, com mulheres muito semelhantes: ambas loiras, ambas com o mesmo nome, ambas do mesmo signo, com um detalhe apenas a diferenciá-las -uma se escreve com um “N”, a outra com dois.

Qual delas tem um “N” e qual tem dois? Talvez nem Eurico saiba. Aliás, se alguém que não sabe distingui-las é ele. Ele se sente ameaçado. Uma das duas tentará matá-lo, ele acredita.

Seus sinistros solilóquios só são interrompidos pela figura de um pastor que agita uma bíblia e diz que as mulheres são o mal, demônios. E de demônio Eurico entende. As duas mulheres a quem ama são para ele uma ameaça. “Você tem motivos para me matar?”, ele pergunta. Ela se sente ao mesmo tempo que o ama e o execra.

Tudo isso se passa num lugar algum. Não há lugar nem país, nem nada. “Aos Pedaços” é pura abstração. É um jogo de preto e branco em que real e alucinação, amor e ódio, fé e danação se encontram. Mas também, remexendo a memória, lá estão os dois playboys sádicos de “Os Cafajestes”, que o mesmo Ruy Guerra fez, brilhante, há uns 60 anos.

Aqui estamos diante de um macho crepuscular, perdido em seus próprios fantasmas, que formam imagens sofisticadas, espaços em que os fantasmas de Eurico flutuam, se apresentam, falam ou silenciam.
A rigor, todos esses personagens são sombras, ou sonhos dispostos a demonstrar que a vida é nada, que os homens são muito pouco, que nosso alter ego talvez não seja mais que um pastor vampiro a brandir sua bíblia.

Desde o nome, “Aos Pedaços” parece querer significar um momento de crise. Uma crise final, talvez, mas crise de um fragmentado Eurico. Ou, pior, um fragmentando. Esse homem se decompõe a cada imagem, a cada branco que sucede ao preto e vice-versa.

Parece que neste filme o claro e o escuro, o preto e o branco, Ana e Anna se anulam, existem para que existam as sombras, os fantasmas, os terrores.

São imagens belas demais para serem desprezadas. Mas o que significam para além dos tormentos de Eurico? Em que padrão se enquadram?

Há filmes em que Ruy Guerra parece explicitamente se fazer opaco, como este. São os menos legíveis de sua desigual filmografia, no sentido de que talvez exista pouco para ver além do que se vê.

Talvez Ruy Guerra, e desde “Os Fuzis”, seja frequentado pelo fantasma da bela imagem, da forma perfeita.

Talvez oscile entre ser clássico, moderno ou, quem sabe, experimental. Como Eurico, essa beleza escapa, se perde em seus pesadelos e tenta se fixar como arte. Isso foi o que, em todo caso, consegui ver neste filme.

AOS PEDAÇOS
– Avaliação Ruim
– Quando Estreia nesta quinta (13) nos cinemas
– Classificação 16 anos
– Elenco Emilio de Mello, Simone Spoladore, Christiana Ubach
– Produção Brasil, 2020
– Direção Ruy Guerra

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