Araguaia: o maior corredor ecológico do mundo!

Leandro Silveira, Anah Jácomo e José Alexandre Diniz*

A onça-pintada (Panthera onca) é o maior felino da América, com uma ampla distribuição geográfica que se estende desde o norte da Argentina até o México. Entretanto, apesar dessa ampla distribuição, a espécie encontra-se ameaçada pela redução dos habitats e, de fato, suas populações encontram-se mais localizadas em algumas regiões e concentradas em alguns biomas. No Brasil, populações maiores e ainda viáveis podem ser encontradas na Amazônia e em algumas partes do Pantanal, mas se encontram ameaçadas na Mata Atlântica, no Cerrado e na Caatinga).

Como as onças-pintadas requerem, em princípio, amplas áreas de habitat preservado para manter populações viáveis, considerando especialmente a disponibilidade de presas, tais como veados, antas e outras espécies de grande porte, elas são mais sensíveis à conversão de habitats para as atividades humanas, o que explica a redução de sua distribuição geográfica ao longo do século XX. Além disso, especialmente em um contexto de conversão de habitats naturais para atividades de pecuária, a menor disponibilidade de presas aumenta os chamados “conflitos de conservação”, já que a onça-pintada começa a predar os rebanhos e eventualmente atacar animais domésticos (cachorros) e passam a ser, assim, ameaçadas pela caça ilegal em retaliação a essas perdas econômicas.

Nesse contexto, em um estudo pioneiro publicado em 2002 no periódico científico “Biological Conservation” e que tem sido constantemente atualizado, Anderson e colaboradores propuseram a criação das chamadas “Jaguar Conservation Units” (JCUs, as “Unidades para Conservação de Onças”), adotando diversos critérios para identificar populações biologicamente viáveis, bem delimitadas geograficamente, e que mereceriam maior atenção para conservação da espécie. É importante entender também que a onça-pintada é o que chamamos em ecologia de “predador de topo de cadeia”, ou seja, em princípio ela não seria predada por nenhuma outra espécie. Assim, se em uma região há uma população de onças-pintadas se reproduzindo (o que pode ser estabelecido pela detecção de fêmeas com filhotes, em diferentes fases), podemos dizer que as demais espécies “abaixo” na cadeia alimentar também estão bem preservadas. Isso caracteriza o uma “espécie-chave” para manter o ecossistema funcionando como uma “espécie guarda-chuva”, já que suas necessidades ecológicas englobam as demais espécies. A onça-pintada é também uma “espécie-bandeira”, emblemática, e chama a atenção das pessoas para a conservação; de fato, a onça-pintada é considerada o símbolo da biodiversidade brasileira, sendo inclusive o dia 29 de novembro “o dia da onça-pintada”.

O IOP e os Corredores Ecológicos

Fundado em 2002, o Instituto Onça-Pintada (IOP; ver https://institutooncapintada.org.br/) se dedica à conservação da onça-pintada, promovendo ações de pesquisa por meio de vários projetos e de conservação efetiva da espécie, tanto “in situ”, ou seja, entendendo e acompanhando os animais na natureza, quanto “ex-situ” (acolhendo animais no IOP, que funciona como um criadouro conservacionista, e desenvolvendo e implementando estratégias de reprodução assistida, avaliando a saúde dos animais etc). Um desses projetos resultou em um trabalho publicado em 2014 na importante revista científica “Landscape Ecology” (Ecologia de Paisagens), no qual analisamos como os grandes rios do Brasil poderiam funcionar como corredores ecológicos ligando os diferentes biomas e regiões do Brasil onde se encontram JCUs. Esse tipo de análise é extremamente importante para a conservação da onça-pintada já que, como discutido acima, é cada vez mais difícil conservar grandes áreas de habitats naturais que sejam capazes de manter populações de onça-pintada. A solução é ligar ecologicamente regiões para que a espécie possa dispersar e avaliar esse processo de dispersão mesmo em paisagens que já são ocupadas, por exemplo, por atividades agrícolas.

Análise dos corredores ecológicos do Brasil, com destaque para o corredor do Araguaia, liderada pela equipe do IOP (Silveira et al. 2014, publicado na “Landscape Ecology”)

Foram analisados os padrões de preservação de habitats naturais e as conexões ao longo de diversos corredores ecológicos em potencial do Brasil, avaliando o seu nível de perturbação. Esse estudo mostrou que a melhor conexão possível entre os diferentes biomas com populações viáveis de onça-pintada seria justamente o Rio Araguaia e sua continuação pelo rio Tocantins, na parte mais ao norte já na Amazônia. Desde então, o IOP tem defendido a formalização desse corredor a partir de uma série de análises mais refinadas e discussões com diferentes setores da sociedade e atores envolvidos a fim de estabelecer quais seriam as etapas necessárias para viabilizar o corredor que foi em princípio chamado de “corredor da onça”, com foco na ligação entre as maiores populações ainda existentes de onça-pintada, no Pantanal e na Amazônia. Entretanto, pensando nos conceitos discutidos acima (espécie-chave, guarda-chuva e bandeira), podemos entender que, uma vez que o corredor seja de fato eficiente para conservar a onça-pintada, ele passa a ter um papel muito mais amplo de conservar toda a biodiversidade na região, bem como os chamados “serviços ecossistêmicos” que essa biodiversidade provê, muitos deles importantes para as próprias atividades humanas, incluindo a manutenção da alta produtividade agrícola da região por meio de preservação de recursos hídricos e de diversos outros serviços (diversidade de polinizadores, por exemplo).

Assim, adotar o nome mais geral “Corredor do Araguaia” parece adequado, de modo que toda essa discussão ganha ainda mais relevância, tanto em termos de conservação quanto em termos de desenvolvimento sustentável envolvendo as mais diversas atividades humanas no Brasil central. Há, sem dúvida, uma série de desafios que precisam ser resolvidos e, mais importantes, diversos aspectos que precisam ser esclarecidos.

Viabilizando o Corredor do Araguaia

O primeiro ponto que é preciso destacar é que a concepção do corredor do Araguaia é diferente da ideia mais “clássica” de corredores ecológicos que encontramos nos livros-texto ou mesma na literatura científica, em dois aspectos importantes. Primeiro, em geral os corredores ecológicos são implementados em escalas geográficas bem mais restritas, de alguns poucos quilômetros, ligando por exemplo unidades de conservação ou regiões adjacentes com paisagens ainda preservadas. Nessas escalas reduzidas, os corredores, ainda que estreitos, são constituídos principalmente por habitats naturais e sem ocupação humana. Certamente o corredor do Araguaia não se enquadra em nenhuma dessas duas características. Como aparece na figura acima, o corredor teria uma extensão de mais de 2800 km, começando na nascente do Araguaia, no município de Mineiros, em Goiás, e terminaria quando o Tocantins encontra com o oceano Atlântico, na ampla região da foz do rio Amazonas.

O segundo aspecto, referente à da ocupação humana no corredor, é ainda mais desafiador e polêmico, já que essa região do Araguaia-Tocantins se encontra no “coração” do agronegócio brasileiro, o que tem gerado muitas discussões e debates, em geral partindo de uma má compreensão da proposta de criação desse corredor. Obviamente não é possível pensar que um corredor ecológico com essa extensão e situado em uma região já ocupada e desenvolvendo atividades econômicas vitais para o País seria algo “pristino”, 100% preservado com habitats naturais, e por isso mesmo é preciso pensar em estratégias inovadoras para viabilizar a funcionalidade desse corredor. Mais importante, é preciso que a sociedade entenda essas estratégias a fim de evitar debates acirrados em torno de problemas que, de fato, não devem existir. A ideia é justamente compatibilizar, da melhor forma possível e a partir das oportunidades de conservação existentes e da legislação vigente (o código florestal brasileiro de 2012), a conservação da biodiversidade e de seus serviços, utilizando a onça-pintada como espécie-bandeira, com a sustentabilidade ambiental das atividades humanas na região.

Um primeiro passo seria definir exatamente o que é o “corredor do Araguaia”, em termos práticos. No mapa da figura acima temos uma região ao longo dos rios Araguaia e Tocantins, cruzando o centro do Brasil. Mas é preciso, além dessa longa extensão seguindo o curso dos rios, estabelecer qual a largura do corredor para viabilizá-lo em termos funcionais e operacionais. Usando a área de vida de uma fêmea de onça-pintada como uma referência inicial (em torno de 30 km2), temos defendido que o corredor englobaria uma área de 20 km em cada margem dos rios, totalizando assim algo como 13 milhoes de hectares para serem planejados e organizados territorialmente. Essa definição permite avaliar os padrões de uso do solo, em termos de ocupação humana (propriedades rurais, cidades, infraestrutura etc), ambientes naturais e conexão ecológica ao longo do corredor, bem como estabelecer a possibilidade de dispersão da onça-pintada entre os biomas e os gargalos que precisam ser resolvidos.

A ideia do “Corredor do Araguaia”, uma faixa de 20 km em cada uma das margens do Rio Araguaia e, continuando ao norte, do Rio Tocantins, passando pelos Estados de Goiás, Mata Grosso, Tocantins e Pará.

Para fins operacionais de obtenção, compilação e organização de dados utilizando sistemas de informação geográfica, cobrimos essa região de cada lado do rio com células hexogonais. Temos que definir quais os municípios que têm alguma parte nessas células, o que é importante não só para definir padrões sócio-econômicos ao longo do corredor mas principalmente nas discussões sobre governança.

Um primeiro passo seria avaliar as características dessa região do corredor, tanto em termos de ocupação humana e atividades econômicas quanto em termos de oportunidades de conservação, e mapear tudo isso. Uma análise preliminar indica que o corredor envolve um total de 119 municipios nos quais nossas células hexogonais estão situadas, com uma população humana em torno de 4 milhões de pessoas, vivendo em 116 cidades, 208 povoados e vilas, 32 áreas quilombolas e quase 500 assentamentos rurais do INCRA. A região é uma das principais áreas agrícolas do país, e apenas como uma referência temos uma produtividade de 5 milhões de toneladas/ano de soja e um rebanho bovino de 15 milhões de cabeças!

Nesse contexto de uma elevada produção agrícola, um ponto importante é entendermos a distribuição das propriedades rurais onde essa produção de fato acontece. Temos em torno de 34 mil propriedades rurais na região, sendo 90% delas menores do que 500 hectares. Entretanto, considerando a área relativa, propriedades com mais de 10 mil hectares ocupam quase 30% da área do corredor! Assim, um número relativamente pequeno de grandes proprietários possui uma boa parte do corredor, o que pode facilitar as discussões sobre como viabilizá-lo a partir das condições já existentes. Vamos voltar a esse ponto importante mais adiante.

Distribuição estatística do tamanho das propriedades rurais ao longo do corredor do Araguaia (à esquerda), mostrando que 90% delas possui menos de 500 ha (círculo superior à direita), e que menos de 1% dos proprietários seriam responsáveis por cerca de 27% da área do corredor (círculo inferior à direita)

Pensando em oportunidades de conservação, por outro lado, temos cerca de 56 unidades de conservação de diferentes categorias ao longo do corredor, com destaque para o parque nacional da Ilha do Bananal, que aliás é a maior ilha fluvial do mundo! Essas áreas protegidas já constituem cerca de 30% da área do corredor, e podemos somar a isso mais 31% de áreas de reserva legal das propriedades, de modo que mais da metade do corredor já está, em tese, protegido com uma área bastante significativa. Além disso, é preciso considerar que, naturalmente, ainda há alguns passivos ambientais a serem resolvidos, ou seja, algumas propriedades podem não estar cumprindo o código florestal e precisam restaurar parte de suas áreas de modo a atender a legislação vigente. Isso pode ser feito por programas de restauração, e algumas delas já estão sendo implementadas, como por exemplo o “Juntos pelo Araguaia” da SEMAD do Estado de Goiás e o “Todos pelo Araguaia”, programa análogo do Governo do Mato Grosso. De qualquer modo, é preciso que os proprietários rurais nessa situação percebam as vantagens, tanto ecológicas quanto econômicas, de atenderem as exigências do código florestal. Um ponto importante nesse sentido é que, uma vez que ainda há possibilidades (e necessidades) de restauração e uma boa quantidade de áreas já preservadas, é relativamente fácil planejar diferentes ações de modo a que a paisagem ao longo do corredor como um todo permita a passagem dos organismos (como a onça) e o estabelecimento de populações viáveis nas áreas maiores e mais contínuas.

Onça-Pintada com seu filhote na nascente do Rio Araguaia | Foto: fotografia de armadilha fotográfica – IOP

Então, a partir dessa descrição geral e resumida da ocupação humana e das oportunidades de conservação já existentes, é oportuno ressaltar que a proposta do corredor do Araguaia não envolve a criação de novas unidades de conservação de proteção integral, nem desapropriação de terras (que é sempre um dos principais receios dos produtores rurais). Os diferentes projetos de lei que já foram propostos nesse sentido, incluindo o recente Projeto de Lei 909/24 do Deputado Ismael Alexandrino, de Goiás, enfatizam isso e deixam claras as vantagens de organizar e formalizar a existência desse corredor. Um dos pilares da definição do corredor, apesar dos enormes desafios envolvidos, seria exatamente manter todas as atividades econômicas!

Algumas lideranças políticas e regionais têm criticado a proposta do corredor e foram contrários à discussão do Projeto de Lei 909/24, argumentando (erroneamente, como já colocado) que essa criação comprometeria a produção agrícola na região e sustentando inclusive que, se o corredor já existe na prática, então não precisaria haver uma regulamentação e uma organização para gestão territorial. Mas, contra-argumentando, se a criação do corredor parte apenas da legislação vigente e não mudaria o uso da terra, qual o problema em formalizar sua existência? Não há nenhuma desvantagem em chamar atenção para o corredor no sentido de promover o desenvolvimento sustentável e estabelecer práticas agrícolas ambientalmente adequadas, algo que tem sido cada vez mais importante inclusive para o comércio internacional.

Assim, não é exagero dizer que o corredor do Araguaia já existe na prática, e a ideia de estabelecer uma organização territorial seria mais importante para governança e para que ações mais específicas de educação e conscientização ambiental, restauração (resolvendo passivos de acordo com a legislação) e implementação de estratégias audaciosas de conservação sejam implementadas, com o apoio dos governos nas diferentes esferas, federal, estadual e municipal, das ONGs e da academia. Implementar uma gestão territorial eficiente e participativa envolvendo os diferentes atores da sociedade, por si só, em um empreendimento nessa escala, já seria um enorme avanço. Voltando a alguns números apresentados rapidamente acima, vamos lembrar que pouco mais de 1% dos proprietários rurais são responsáveis por quase 30% da área do corredor. Se esses grandes proprietários passam a entender a importância do corredor e todas as vantagens de sua implementação, por meio de discussões francas e apresentação de dados objetivos sobre a importância de manter os recursos naturais, aderindo aos programas implementados, isso pode ser extremamente importante para que todos sigam seu exemplo e percebam que tudo isso é um “win-win game”, onde todos ganham, inclusive a própria natureza!  

Nesse sentido, a realização do evento “Araguaia: um rio de oportunidades”, promovido pelo Ministério Público Federal (MPF) e que ocorreu em Brasília entre os dias 6 e 7 de junho de 2024, contou com a participação dos diferentes setores da sociedade e foi realmente um marco! Concretizando a ideia da criação do corredor (independente da proposta do PL 909/24), após o evento foi lançada a “Carta do Araguaia”, onde podemos entender melhor a ideia geral da formalização do corredor e as vantagens envolvidas em seu reconhecimento. Esse movimento, liderado pelo MPF, começou justamente com uma expedição promovida pelo IOP em 2023 a fim de mostrar aos procuradores da câmara ambiental do MPF a importância de preservar o rio Araguaia e seus afluentes e garantir assim a existência da conexão entre Pantanal, Cerrado e Amazônia. O envolvimento do MPF é importante justamente porque garante que a formalização do corredor irá ocorrer sempre seguindo a legislação vigente e respeitando os direitos individuais e de propriedade.

Workshop promovido pelo MPF em junho de 2024, “Araguaia: um Rio de Oportunidades”, com a participação das equipes do MPF, Instituto Onça-Pintada (IOP), programa “Araguaia Vivo 2030”, “Oréades” e “Gigantes do Araguaia/Pesque Já” | Foto: Acervo Pessoal

O corredor do Araguaia é uma realidade, precisamos apenas reconhecê-lo para organizar melhor as ações e promover ainda mais o desenvolvimento sustentável na região! Sem dúvida, teríamos o orgulho de dizer que o Araguaia se tornaria o maior corredor ecológico do mundo e, mais importante, firmemente estabelecido a partir da implementação prática da ideia de desenvolvimento sustentável!

*Leandro Silveira – Presidente do Instituto Onça-Pintada (IOP)
Anah Teresa de Almeida Jácomo – Diretora do Instituto Onça-Pintada (IOP)
José Alexandre Felizola Diniz Filho – Departamento de Ecologia, ICB, UFG e coordenador científico do Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA/FAPEG

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