Morte dos tradutores Eduardo Brandão e José Rubens Siqueira: caem duas pontes da cultura

Quando morre um tradutor cai uma ponte na estrada pavimentada da cultura universal. O tradutor põe o leitor para falar com os escritores cara a cara. É como se o leitor falasse o idioma dos autores. Não há tradução perfeita, mas as melhores “anulam”, de alguma maneira, o original e nos fazem entender a outra cultura como se fosse nossa. A outra cultura fica mais viva quando a tradução é, por assim dizer, irrepreensível. Quando li “Paradiso” (o “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, de Cuba), de Lezama Lima, na tradução de Josely Vianna Baptista, fiquei com a impressão de que o prosador cubano havia escrito em português (as traduções de Sergio Molina causam-me a mesma sensação). Claro que exagero. Mas, se o faço, é para ressaltar a alta qualidade da tradução. Josely Vianna Baptista capta a prosa precisa, por vezes enviesada, a poesia da prosa e as nuances da escrita do autor. Nunca o simplifica. Pelo contrário, a sua complexidade é visível e legível.

Diz-se, comumente, que, quando a tradução é boa, nem se percebe o tradutor, sua mão artística, quase de Deus. Porém, se a tradução não é boa — chego a evitar o uso da palavra “ruim” (assim como, católico ímpio, não uso “cão” para me referir a cachorro) —, nota-se, de cara, mesmo quando não se tem acesso ao original. Então, meus aplausos para os grandes tradutores. Os de poesia, então, merecem o Céu, sem escalas pelo Purgatório ou pelo Inferno. Poesia pode até ser considerada intraduzível, mas a tradução, tanto de prosa quanto de poesia, é vital. Afinal, poucos leem em latim, grego, russo, iídiche, alemão e hebraico.

Eduardo Brandão “melhorou” Javier Marías

Quando estava em férias, em Montevidéu, curtindo as livrarias (meus templos sagrados) — Más Puro Verso, Escaramuza e Puro Verso —, um amigo me alertou: “O tradutor Eduardo Brandão morreu” (aos 78 anos). Eu havia acabado de comprar a biografia “Mientras Llega la Felicidad — Una Biografía de Juan Marsé” (Anagrama, 751 páginas), de Josep Maria Cuenca, e examinava um livro de críticas literárias — na verdade, ensaios — de Javier Marías.

Juan Marsé e Javier Marías são dois dos melhores escritores da Espanha. São diferentes e, por isso, complementares. São as diferenças que enriquecem o mundo, o tornam menos unidimensional.

Eduardo Brandão traduziu, com extrema perícia, a prosa complexa de Javier Marías. Como se sabe, ao modo de Proust, é preciso ter paciência com o, digamos, estilo digressivo de Javier Marías, que raramente é direto ao contar suas histórias (tão enviesadas quanto a vida das mulheres e homens reais).

Pois Eduardo Brandão capta bem a linguagem, os vieses das histórias de Javier Marías e, sem simplificá-las, as torna palatáveis para os leitores… atentos, é claro. Recomenda-se ao leitor que dê uma chance ao escritor espanhol, que morreu, em 2022, aos 70 anos — na flor da idade para um bom escritor.

Eduardo Brandão: expert em traduções do inglês e do espanhol | Foto: Reprodução

Com Javier Marías é assim: de cara, percebe-se que se trata de um grande autor. Mas só a leitura integral do romance, qualquer um deles, revela o criador de uma arquitetura perfeita, tanto em termos de linguagem quanto das histórias em si. Ao término da leitura, o leitor dirá, por certo: “Bueno, bueno, bueno… eis um autor notável”. E notará que escreveu “obras abertas”. Isto notará mais aquele que tem intimidade com suas obras.

Mas vale lembrar: Javier Marías (assim como o chileno Roberto Bolaño) chegou grande, até imenso, ao Brasil graças às artes tradutórias de Eduardo Brandão.

Perguntam-me: “Como ler Javier Marías?” Como sempre, não sei responder. Mas arrisco, só por arriscar mesmo, pois considero que a obra de um escritor, por seu caráter autônomo — às vezes, não é, claro (ou escuro?) —, pode ser lida a partir de qualquer livro, e digo o seguinte: “Comece logo pela trilogia “Seu Rosto Amanhã”, que é composta dos seguintes romances-catedrais: “Febre e Lança”, “Dança e Sonho” e “Veneno, Sombra e Adeus”. Os três foram traduzidos por Eduardo Brandão, de maneira, digamos, perfeita. Espera-se que São Jerônimo o tenha recebido com tapete vermelho no Céu.

Não sei se Javier Marías lia em português, mas, dada a irmandade entre o espanhol e o português — escapando-se, lógico, dos falsos cognatos (conta-se que, numa visita a Buenos Aires, o ex-presidente José Sarney teria dito que se sentia “embarazado”, ou seja, grávido. Até meninos de 2 anos explodiram em gargalhadas, certamente) —, talvez tenha examinado as traduções de Eduardo Brandão e as de Portugal. Se leu ao menos trechos das versões do brasileiro, deve ter pensado (sim, ainda não sou espírita): “Puxa vida, parece que escrevo melhor em português”. (Sabe-se que Paulo Coelho “escreve” muito melhor em francês, graças aos tradutores da França, que transformam qualquer escritor em Flaubert e Proust.)

Eduardo Brandão traduziu mais de 100 livros do espanhol e do inglês. Era, pois, uma ponte que ligava o Céu ao Nirvana.

Zé Rubens Siqueira nos deu Coetzee e Toni Morrison

Agora, morre outro tradutor notável, José Rubens Siqueira, aos 79 anos, de câncer (doença que levou meu pai, Raul, ao túmulo e uma irmã, Eliana, ao suicídio. Érika Belém, minha hermana caçula, resiste bravamente, livre do mal). Ele traduziu mais de 200 obras. Um gigante, portanto.

José Rubens Siqueira traduzia, com mestria , autores díspares, sem “uniformizar” suas prosas, optando por manter, com rigor, a diversidade de suas escrituras e linguagens. Passaram por sua pena amorosa J. M. Coetzee (que “piorou” para agradar os leitores acadêmicos, que são os criadores de “fama”), Isaac Bashevis Singer (o grande escritor judeu, um ás do iídiche) e Toni Morrison (uma das escritoras mais decisivas dos Estados Unidos. Cobra-se uma nova tradução de seu melhor romance, “A Canção de Solomon”. É o mais poético de seus livros, quem sabe), Salman Rushdie (ótimo escritor, porém famoso por motivos relativamente alheios à literatura. “Versos Satânicos” não é um grande romance, mas, dada a perseguição dos iranianos e outros aloprados, deu-lhe renome internacional) e Shakespeare.

Ser múltiplo, José Rubens Siqueira não era apenas tradutor. Era diretor de teatro e cinema, ator (atuou na peça “O Jardim das Cerejeiras”, de Anton Tchékhov), dramaturgo, cenógrafo. Tudo isso e mais um pouco.

José Rubens Siqueira: um criador cultural múltiplo | Foto: Reprodução

No teatro, José Rubens Siqueira começou logo com um peso pesado, “O Processo”, de Kafka, em 1962. Em 1965, chegou ao cinema com o curta-metragem “Opus 1”.

Mestre do teatro experimental, José Rubens Siqueira deu aulas na PUC-São Paulo. Dirigiu o filme “Amor e Medo”, em 1974, com os atores José Wilker e Irene Stefânia. O Festival de Berlim exibiu a película (uma palavra bonita, que, referindo-se a filme, lembra pele, uma pele, diria, fina).

Sabe o grande Flávio Rangel? Pois é: José Rubens Siqueira escreveu sua biografia, publicada sob o título de “Viver de Teatro”. Homem de mil faces, mais múltiplo do que duplo, escreveu, com Gabriela Rabelo, o livro infantojuvenil “Tronodocrono”.

José Rubens Siqueira adaptou para o teatro obras de Antonin Artaud (cuja loucura é lúcida), Federico García Lorca, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Guimarães Rosa (um autor que parecia, mas não era, inadaptável. Marcos Fayad, um gênio do teatro, adaptou “Cara de Bronze” com tal mestria que levou lágrimas não aos meus olhos, e sim ao meu cérebro. Lágrimas de contentamento — cousas mais do espírito do que do sentimentalismo. Não aprecio lágrimas prêt-à-porter).

Há um aspecto que chamou minha atenção. Nos últimos dias, quando dialogava com a Velha Senhora, talvez tentando ludibriá-la, evitando que se tornasse seu guia pela divina comédia que é a vida, da qual a morte é um pedacinho de nada, José Rubens Siqueira recebeu uma baita homenagem de seus familiares — a mulher e três filhos. Uma espécie de ritual de partida, que muito me agradou. De acordo com a “Folha de S. Paulo”, eles “fizeram uma sessão com uma série de filmes dirigidos por Siqueira que foram restaurados pela Cinemateca Brasileira e pelo Laboratório Link Digital, do Rio de Janeiro”.

A atriz Luciana Borghi contou à “Folha”: “Ele estava muito consciente de tudo que estava acontecendo. Foi muito bonito testemunhar esse último ano em que ele foi tão celebrado, voltou aos palcos e recebeu diversas homenagens. Durante os últimos dias, ele disse: ‘Que fim de vida bonito estou tendo. Com esse carinho todo’”.

Eu, morto, gostaria de dizer aos possíveis chorões: “Parem com isso. Leiam uma poesia de Emily Dickinson para mim”. Para mim? Pois é: os mortos continuam vivos por sua história, pequena, média ou grande.

(Email: [email protected])

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