Filme sobre Bob Dylan começa bem, mas se perde em burocracia

um completo desconhecido cinebiografia de bob dylan ganha novo trailer

(FOLHAPRESS)

O que encanta em “Um Completo Desconhecido” é quando Bob Dylan, de fato, um completo desconhecido, chega a Nova York e, ato contínuo, vai visitar Woody Guthrie no hospital psiquiátrico de Greystoke Park.

Guthrie era já uma espécie de mestre secreto da música country dos Estados Unidos. Inspirava os melhores entre os mais jovens, entre eles Dylan, que em pleno hospital conhece também Pete Seeger, outro músico de relevo e, naquele momento, já conhecido.

Nisso estávamos no começo dos anos 1960 e no melhor momento do filme, que consegue transmitir ao espectador a ligação entre esse tipo de música e os novos ares que começam a soprar no país.

Ares de revolta, certamente, com o início do movimento pelos direitos civis da população negra, de justiça social, a presidência Kennedy, os beatniks etc. Pete Seeger mesmo acabava de se livrar de um processo por atividades antinacionais.

A caça às bruxas enfraquecia, o sentimento de guerra fria se aplacava. Uma América pacifista, não raivosa, irrompia e se impunha. E o centro cultural disso era o Village, bairro boêmio de Nova York. Nos cafés escondidos do bairro se apresentam intérpretes como Joan Baez e o próprio Seeger. É lá também que começa a surgir Bob Dylan. A atmosfera criada por James Mangold nesse trecho do filme é viva, surpreendente, integra os sentimentos libertários daquela juventude, sua rebeldia e a música que a representava.

É uma pena que as coisas não continuem assim no filme, pois o que vem depois é conhecido. Dylan se torna conhecido, depois famoso, em seguida célebre, com as dores de cabeça da fama, blablabá. A força que marca o primeiro quarto do filme parece perder-se num mar de burocracia cinematográfica.

O que vemos então é, basicamente, aquela batida chata de todos os filmes sobre jovens gênios em ascensão: a namorada, o caso com uma Joan Baez já famosa, o progressivo conflito com os músicos mais tradicionalistas -sim, também lá houve uma batalha entre acústico e eletrônico, como aqui envolvendo raízes, pureza suposta etc.

A surpreendente inventividade de Mangold parece que se concentrou toda no início do filme. Para o restante é outra história. Tome-se, por exemplo, a cena em que Dylan está no palco, cantando com Baez. Enquanto o público se entusiasma, Sylvie (a namorada dele) começa a ficar com os olhos marejados.
É um momento constrangedor, porque Sylvie é uma pintora e uma ativista de direitos civis. Não é uma boboca. Aliás, ela é que lança, no filme, a ideia de que Dylan, por mais que o conheça, continua um desconhecido. A produção sabia que era preciso inserir algum tipo de conflito por ali, tudo bem, mas não precisava ser tão banal assim.

Com tudo isso, o sentimento de rebeldia do começo do filme se dilui progressivamente, à medida que se limita aos problemas e alegrias de Dylan com o meio musical e a celebridade. E parece morrer com Kennedy, com Malcolm X, Martin Luther King e outros.

Parece importar ao filme, muito mais, definir se Bob Dylan é ou não um traidor da música folk, por introduzir som eletrônico, do que a intensificação do conflito no Vietnã, entre outras coisas. E concluir que não é, claro.

Enfim, o filme dedica-se a partir de certo momento a esterilizar tudo de interessante que propôs no seu início. A ideia de libertação, ali dominante, vai para o ralo. Com ele, vai o sentimento de uma conspiração clandestina se desenhando nas canções, nas amizades, nos encontros, nos barzinhos do Village.

Mesmo o conflito entre música acústica e música eletrônica não reflete a ideia de uma necessária (ou não) mudança no pensamento original de Bob Dylan, caso quisesse se conservar original. Essa mudança parece, no filme, algo impulsionado pelo gênio de Dylan. Mas, sendo assim, ele será também um gênio de convenção: gênio incompreendido. Ou antes, compreendido apenas por outros gênios etc.

Não sobra nada do filme, então? Sobra bastante. A música de Bob Dylan (e não só) está lá e compensa quaisquer fragilidades do conjunto. E, vamos convir, não apenas a música. No mais, nunca entendi por que Timothée Chalamet tem sido tão incensado como grande ator e tal. É melhor, porém, mudar de opinião: sua composição de Bob Dylan é do tipo que você olha para a tela e não vê o ator, vê Bob Dylan!

UM COMPLETO DESCONHECIDO
Avaliação Bom
Quando Estreia na qui. (27) nos cinemas
Classificação 14 anos
Elenco Timothée Chalamet, Edward Norton, Elle Fanning
Produção Estados Unidos, 2024
Direção James Mangold

Adicionar aos favoritos o Link permanente.