A descoberta do dr. Bernardo Sayão, um dos construtores da BR-153 e de Brasília

Yuri Baiocchi

Especial para o Jornal Opção

Chovesse ou não, todas as tardes a modorra tomava conta dos cômodos daquela casa e de todas as casas do lugarejo.

As almas das pessoas migravam para as redes, os bancos de madeira, as sombras das beiras dos telhados ou das mangueiras, para o batente da porta da igreja e até para as camas — e deixavam seus corpos ali, inertes, por hora indefinida, ou até que novamente houvesse vontade de viver. O certo é que, quando chovia, a vontade tardava ainda mais a voltar.

Mas havia algo tão incerto e inevitável quanto a chuva, algo que rompia com a rotina modorrenta de todos-os-dias e punha uma única pessoa a caminhar nas horas mortas da cidade.

Fosse, talvez, a novidade da loja, inaugurada por um rapaz bonito e delicado, vindo da cidade vizinha. Mas a loja vendia apenas chapéus masculinos, e a transeunte em questão era apenas uma menina.

De tanto ver chapéus para um sem-número de irmãos — verdadeiros e inventados —, de tanto frequentar a chapelaria, acabou se compromissando com o chapeleiro, que passou a lhe encomendar finos lenços e sapatos.

Aquela inquietação, no entanto, persistia todas as tardes. E a transeunte gastava a sola dos sapatos novos enquanto a cidade matava o dia.

Tão delicado era o rapaz, apesar de carregar um sobrenome de jagunço. Entendia tanto de lenços! Como poderia ser dado a tal sabedoria? Talvez fosse a fé, por ser muito religioso, que o aproximara mais dos lenços do que dos coldres. Na Festa da Penha havia um lenço azul. Decerto foi Nossa Senhora a autora daquele arranjo raro, confortava-se a menina.

Getúlio Vargas, com Bernardo Sayão e Luiz Simões Lopes, no Palácio do Catete, no Rio | Foto: Reprodução

Não bastasse o rapaz ir à igreja todos os dias, a igreja também ia, todos os dias, à sua casa e à chapelaria. E a transeunte torcia, com fervor, para que o chapeleiro, que só falava de lenços e ave-marias, também fosse realmente bom pecador.

Numa tarde em que a cidade inteira morria e a chuva traiçoeira caía, a transeunte buscara abrigo sob aquele chapéu. Eis que, ao chegar ao comércio, viu o padre já a cobrir o chapeleiro — e, como a chuva, aqueles dois também choviam.

Depois disso, a transeunte passou a morrer em casa todos os dias. Até que, noutra chuva forte — já não sei em que ano —, um barulho à porta ressuscitara a todos naquela tarde em que a modorra balançava não mais apenas a rede, o varal e a figueira.

“Meu nome é Bernardo Sayão”

Uma pisada firme no assoalho antecipara a vida. Na segunda pisada, a menina saltou da rede e deu de cara com um homem de quase dois metros de altura, ombros de largura nunca vista, roupas brancas molhadas no corpo e botas sujas de lama, que se anunciou do corredor:

“— Dr. Augusto Rios, vim me apresentar ao senhor a pedido do dr. Pedro Ludovico. Sou o engenheiro responsável pela construção da estrada que beneficiará este município e espero contar com a colaboração do juiz de Direito desta comarca. Meu nome é Bernardo Sayão.”

Naquele exato momento, narrou-me a menina, descobrira-se dona de hormônios. De fato, de mais hormônios do que de lenços.

Outra vez transeunte, nunca mais voltou a morrer. Não daquela causa.

(História ocorrida em Jaraguá, Goiás, no início dos anos 1940, tendo sido preservados propositadamente os nomes do chapeleiro e do padre.)

Yuri Baiocchi é poeta e pesquisador.

Leia mais sobre o engenheiro-agrônomo Bernardo Sayão no Jornal Opção: https://tinyurl.com/y42t4k9s.

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