Correndo atrás de Adélia Prado, a poeta que encantou Drummond e os brasileiros

Chris Resplande

Especial para o Jornal Opção

Não sei dizer em que data precisa se deu o meu primeiro contato com a poesia da mineira Adélia Prado. Lembro-me muito bem, no entanto, do seu primeiro poema que li — “Para o Zé” — e como fiquei dias ruminando, engasgada, espantada. Num torpor poético.

O poema me emocionou tão profundamente que não sosseguei enquanto não conheci um pouco mais a poeta “bíblica, lírica, existencial”, nos dizeres de Carlos Drummond de Andrade, que teve contato com sua poesia em 1976 por meio do poeta e crítico Affonso Romano de Sant’Anna, falecido recentemente.

Drummond então sugeriu à Editora Imago a publicação da obra, que foi seu livro de estreia: “Bagagem”.

Os elogios de Drummond a Adélia Prado, que “faz poesia como faz bom tempo”, todos conhecem. O que o leitor não conhece é que, ao mergulhar na poesia de Adélia Prado, é como se ela própria me tomasse pela mão, segurasse firme, porém com muita doçura, e dissesse que eu seguisse catando versos, colhendo encantos, nessa longa estrada de tornar-me poeta.

Voltando ao primeiro poema lido, dele passei a usar um verso para qualquer alegria e conforto, mesmo o mais pequenino: “Meu coração vai desdobrando os panos/ se alargando aquecido/ dando a volta ao mundo/ estalando dedo para bicho ou gente”.

Outros poemas e versos se seguiram e tornei-me definitivamente admiradora desta que é considerada uma das poetas vivas mais importantes da língua portuguesa.

Foi então que em 2018 surgiu a oportunidade de enviar uma carta a Adélia Prado, por meio do então bispo-auxiliar de Goiânia, que estava indo a Divinópolis (MG). Tive a ousadia de pedir-lhe que entregasse a missiva. Católica, certamente receberia uma correspondência das mãos de um bispo. E assim aconteceu. O bispo me garantiu, dias depois, que a carta fora entregue. A resposta nunca veio, embora a esperança tenha perdurado uns bons meses.

Uma carta para a poeta Adélia Prado

Vamos à carta, escrita em 18 de março de 2018:

Adélia,

Esta é uma carta de agradecimento. Ensaio há anos para escrevê-la; vontade que permanece medo que se renova, pois a cada leitura, em cada poema, é uma sensação de alma exposta, espelho de sentimentos escondidos que revelam o que eu só desconfio, às vezes.

Nasci em Goiânia, terra de planuras sem fim, o que marcou minha existência; por não ter um morrinho para esconder as angústias, fui obrigada a procurar horizontes abertos e nesta procura a poesia foi o “sinal luminoso na brutalidade das coisas”.

Sou neta e filha de mineiros, que, além da existência, marcou minha essência. Minas é o mundo e é o particular; a quietude, a mística, mas também a prosa, o encontro. Minha avó mineira era o mundo, tudo nela era uma comunhão de coisas espantosas, nunca uma dualidade: o bandolim, a vitrola, a poesia, o remédio caseiro, o bate-boca no coral da paróquia, o chá de canela com uma cachacinha, a fala aberta, a coragem. Pela janela, às escondidas, dava-me o polvilho escaldado para as quitandas… “Se for isso o céu, está perfeito”. Procurei em mim vestígios dessa mulher e a coragem para a carta começou a cutucar e a crescer.

A vida requer coragem… para uma simples carta? Perdoe-me, mas não porque é para você, a poeta lírica, bíblica, existencial, como diz Drummond. Você é de casa, entrou, tomou um café; de você não tenho medo algum. O medo é de mim. Porque escrever é mostrar a alma, é zona abissal a que só eu tenho acesso. É ofício que nunca quis, Deus me livre! É muita intimidade! E a escrita impõe um só caminho, ser absolutamente transparente. Ah, você já disse isso: “só vejo dois caminhos, ou viro doida ou santa…”

O recato me impede. Porque erro tanto; sou tão frágil e finjo-me forte; vaidosa e finjo-me humilde, e oscilo entre coisa e outra; faço-me de boba, faço pecados. Tratam-me por fortaleza quando tenho é medo e a distância entre pensamento e fala se estabelece. Mas há um chamamento, pois “para o desejo do meu coração, o mar é uma gota”.

Curiosa, de perguntas infinitas, cavo meio tonta resquícios de tudo que fui para saber o que fazer hoje. Porque a sua poesia tem este sentido, o de pensar de mim para além, porém mais ainda para meu íntimo. Deixar vir à tona emoções, saudades, coisas fugidias, momentos que tento alcançar, reviver, entender. Fico como correndo atrás da sombra de uma borboleta, algo vem até a garganta e engulo, com olhos cheios de água. Fico quietinha, absorta de alegria e deslumbramento. Como pode ser lindo assim?

Você faz do simples, do comum da vida, o universal. Das coisas miúdas, próximas, trata do Homem. Todo este sentir a partir da sua poesia invade-me de tal modo que “meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo”. Em minha pequenez compreendo tão profundamente que emociono e choro.

Ah! E o seu homem universal? A quem amo “com a memória, imperecível”. Sonho com ele, Adélia, caso-me com ele de véu e grinalda, entoando o Glória a Deus nas alturas e dou para ele comer “bolo de noiva, puro açúcar, puro amor carnal disfarçado de corações e sininhos”. Vou cozinhar para ele e cantar. Vou “ajudar a limpar os peixes” e “deixar o tacho no fogão com água quente”. Ao deitar-me com ele, “salvador do meu corpo”, com “um apetite de desespero” vou rezar, agradecida.

Sou muito grata a Deus, de quem não tenho medo algum. Ele me põe no colo, ri das minhas artes e diz que tem muita saudade de quando era menino. Sou grata a você, que põe no colo minhas dores e esperanças, ri das minhas bobeirinhas, acha muita graça das tolices que penso e da minha mania de espantar com tudo que é bonito. Agradeço porque entendi que “minha enormíssima paciência de ficar à toa, só pensando, pensando e sentindo” é o que tenho de melhor.

Obrigada!

Chris Resplande é funcionária pública do TRE, produtora cultural e poeta

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