Livro revela o histórico encontro entre Martha Gellhorn e Nadejda Mandelstam em Moscou

Um dos maiores poetas russos, Óssip Mandelstam (1891-1938) escreveu um poema sobre os bigodes de barata do montanhês do Kremlin, Ióssif Stálin (1878-1953) e acabou preso e isolado no gulag.

Os versos de Óssip Mandelstam eram (são) uma crítica corrosiva ao totalitarismo do regime comunista. Só mesmo um poeta do porte do russo para ter tanta coragem de enfrentar Stálin.

O ditador ligou para Boris Pasternak, o grande poeta que é mais conhecido globalmente como romancista, devido a “Doutor Jivago”, que ganhou o Nobel de Literatura e foi levado ao cinema. Stálin perguntou se Óssip Mandelstam era um “grande” poeta.

Boris Pasternak sabia que Óssip Mandelstam era um gigante poético, mas hesitou. Disse que gostaria de falar sobre a vida e a morte com Stálin. Ante a “hesitação” do bardo, o ditador desligou o telefone. Ismail Kadaré escreveu um romance magnífico — “Um Ditador na Linha” (Companhia das Letras, 159 páginas, tradução de Bernardo Joffily) — sobre a, digamos, “culpa” de Boris Pasternak.

No gulag, com tifo e faminto, Óssip Mandelstam morreu, aos 47 anos, em 1938. Pode-se falar numa espécie de assassinato indireto. Porque o bardo foi colocado lá para morrer. Igualmente vítima do gulag de Stálin, Varlam Chalámov contou a história da morte do poeta no livro “Contos de Kolimá” (Editora 34, 304 páginas, tradução de Elena Vasilevich e Denise Sales). O Jornal Opção resenhou a obra: “Conto-réquiem de Varlam Chalámov resgata história de como morreu o poeta russo Óssip Mandelstam” (https://tinyurl.com/uxtekca6).

Eis uma tradução brasileira do poema sobre Stálin, feita por Astier Basílio (que capta bem a mescla de cômico e trágico do poema — como se fosse um riso dorido): “Nós vivemos sem estar mais sentindo o país,/ A dez passos não se ouve o que nossa voz diz./ Meia prosa e já basta que lembrem/ O matuto da serra no Kremlin./ Os seus dedos são vermes sebentos, obesos./ Bigodões de barata sorrindo/ E os coturnos brilhando de lindo./Mas lhe cerca a ralé dos chefes cabeçudos/ E ele brinca com os seus zumbis de faz-tudo./ Um que chora, um que mia e soluça./ Ele bichopapoa e cutuca,/ Como casco de ferro, ato em ato ele atesta:/Em um olho, em um cílio, em um púbis, na testa./ Toda pena de morte — uma amora,/ Peito largo de quem vem da Geórgia”.

A poesia de Óssip Mandelstam sobreviveu graças, em larga medida, à memória prodigiosa de sua mulher, Nadejda Mandelstam (1899-1980). A história deste ser fascinante pode ser conferida no belo romance “O Que Ela Sussurra” (Companhia das Letras, 192 páginas), da brasileira Noemi Jaffe. (Para saber mais sobre Nadejda Mandelstam vale a leitura de https://tinyurl.com/5c82rkst.)

Nadejda Mandelstam decorou — e falta alma ao verbo decorar — grande parte da poesia de Óssip Mandelstam. Pode-se sugerir que se impregnou da poesia do marido. Por isso nós temos a chance de lê-la.

Sim, antes de ir para o gulag, para lá morrer — aos poucos, sofrendo (por certo, era o intento de Stálin) —, Óssip Mandelstam já tinha publicado muito de sua poética. Mas parte dela devemos à memória da notável Nadejda Mandelstam.

Valentia de Nadejda Mandelstam atraiu Martha Gellhorn

Leio sobre Óssip Mandelstam, o amigo de Anna Akhmátova (a Púchkin de saia; o autor de “Evguiêni Oniéguin” é a Akhmátova de calça), há anos, mas nunca havia ouvido falar do relacionamento entre Nadejda Mandelstam e a jornalista Martha Gellhorn (1908-1998), uma das maiores correspondentes de guerra do século 20.

A história do encontro entre Nadejda Mandelstam e Martha Gellhorn está relatada no livro “Martha Gellhorn — Una Vida” (Circe, 511 páginas, tradução de Beatriz López-Buisán), da jornalista e escritora britânica Caroline Moorehead (cuja mãe foi amiga da repórter americana).

Martha Gellhorn dizia que a valentia e a coragem eram essenciais. “Os covardes a aborreciam.” De acordo com Caroline Moorehead apreciava ter heróis. No princípio da década de 1970, sua heroína era exatamente Nadejda Mandelstam.

A repórter leu “Contra Toda a Esperança”, as memórias de Nadejda Mandelstam, e quedou-se mesmerizada.

Caroline Moorehead diz que “Martha leu a obra de uma sentada e pensou que a autora poderia devolver-lhe a fé na capacidade de perfeição do ser humano. A mulher havia sido valente, em condições infernais”.

Uma frase de Nadejda Mandelstam — “se não pode fazer nada, grita” — calou fundo em Martha Gellhorn. A repórter dizia aos amigos que a russa era uma “testemunha das injustiças de sua época”.

Poema de Óssip Mandelstam

Inseparável do medo é a queda

Medo é mesmo do vazio o sentimento.

Quem das alturas nos atira a pedra,

Rejeitando ela o jugo do momento?

E tu, com teus passos hirtos de monge,

Mediste em tempos a nave empedrada:

Calhaus e sonhos rudes — não está longe

A sede de morte, a grandeza ansiada!

Maldito sejas, gótico abrigo,

Quem entra é pelo tecto enganado,

Na lareira não arde o lenho amigo.

Vivendo eternidade poucas haja,

Mas, viver ao momento subjugado —

Que terrível sorte e que frágil casa!

(Poema de 1912, do livro “Guarda Minha Fala Para Sempre”, de Óssip Mandelstam. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Editora Assírio & Alvim. Edição portuguesa, daí “tecto”.)

Empolgada com a trajetória de Nadejda Mandelstam, Martha Gellhorn decidiu escrever-lhe. Na sua resposta, a russa convidou-a para visitá-la em Moscou.

“Venha, venha, venha. Me fará terrivelmente feliz se vier. Por favor, venha, não deixe de vir. Você gosta de marmelada de laranja? Eu sempre comia quando era pequena. Como estou gagá, quero sentir outra vez, como a menininha que fui, como é comer marmelada em meu café da manhã. Mando-lhe um beijo”, escreveu Nadejda Mandelstam para Martha Gellhorn.

As duas começaram a se escrever com frequência. Porém, Martha Gellhorn não tinha muito interesse pela União Soviética de Leonid Brejnev, uma ditadura totalitária. Ela imaginava Moscou como uma Chicago às margens do Volga: “Plana, odiosa e gelada no inverno” (a repórter não apreciava lugares muito frios e adorava sol).

Mulher dura, que sobreviveu a Stálin e sucessores, com uma retidão exemplar, Nadejda Mandelstam insistiu e, num verão da década de 1970, Martha Gellhorn voou para Moscou.

Atendendo pedidos de Nadejda Mandelstam, a jornalista levou uma bagagem gigante para Moscou (sentindo-se uma espécie de Papai Noel) — com medicamentos para úlcera, anti-inflamatórios para combater artrite num joelho da amiga epistolar, chá de caxemira, um frasco de Arpège, 14 pares de meias de nylon, um abrigo de primavera , marmelada de laranja e gravações de Menuhi. Mas não atendeu à solicitação da russa por obras literárias pornográficas.

Trata-se de Yehudi Menuhi (1916-1999), violonista e maestro anglo-americano. Numa carta, Nadejda Mandelstam escreveu que “o som do violino de Menuhi lhe soava ‘inteligente, bondoso e cristão’”.

Por conta própria, Martha Gellhorn acrescentou na bagagem “uma generosa provisão de uísque, novelas de Ed McBain e Mickey Spillane e um dossiê das resenhas sobre ‘Contra Toda Esperança’”. Nadejda Mandelstam não havia lido os comentários.

O livro não cita a data exata da visita, mas, como Nadejda Mandelstam tinha 74 anos, deve ter sido em 1973. A russa “era uma mulher baixa, fornida, quadrada, com quadril grande e ombros largos”. Suas pernas eram arqueadas. Os olhos eram “azuis pálidos”. O olhar era “triste e inocente”. “Fumava e tossia sem cessar.”

O apartamento onde Nadejda Mandelstam morava “estava sempre cheio de pessoas”. Flores murchas, roupas, papeis e livros estavam por toda parte, distribuídos de maneira caótica, o que desagradou a repórter (que era organizada e disciplinada). O calor era intenso.

Martha Gellhorn levou Nadejda Mandelstam para almoçar num restaurante. No diário, a repórter escreveu: “Ela vestia uma blusa branca de nylon, com bordados, uma saia reta na cor mostarda, bastante suja, sapatos de pano da mesma cor e uma faixa negra na cabeça. Suspira como um animal; produz medo. Será coração [problema cardíaco]? Enquanto comíamos, falamos de O. M. e do amor”.

“Durante a separação — primeiro ano da guerra civil —, ela [Nadejda Mandelstam] teve amantes e os desfrutou. Ele [Óssip Mandelstam] não podia estar sem ela, a cada instante. Ela queria estar só, não tinha amigos porque ele os afastava”, anota Caroline Moorehead baseada nos apontamentos de Martha Gellhorn.

Os momentos de felicidade de Nadejda Mandelstam “estavam relacionados” com sua capacidade de rir das coisas. O riso é uma revolução íntima, singular. E devorar a amargura do ser.

Quando Nadejda Mandelstam anunciou que tinha interesse em morar em Londres, Martha Gellhorn, que não apreciava quem tolhesse sua liberdade de ir e vir, assustou-se.

Em Moscou, devido ao calor excessivo, Martha Gellhorn se sentia abatida. A comida, oferecida nas horas mais inusitadas, a confundia. Eram cogumelos fritos às cinco da tarde e batatas fritas às oito da noite.

Segundo Caroline Moorehead, Martha Gellhorn “duvidava da honestidade de Nadejda Mandelstam quando falava da fé que professava e ficou agastada quando, depois de comover-se ao receber um frasco de perfume, a russa disse que era o primeiro que havia visto em sua vida”. Observadora atenta, a repórter “descobriu um frasco de Chanel nº 5 numa das estantes da biblioteca”. (Sem dúvida, uma mentirinha dessas que não fazem mal algum. Nadejda Mandelstam certamente quis apenas reforçar a importância do presente.)

De acordo com a biógrafa, “Martha seguiu admirando a mulher como escritora e respeitava sua coragem, mas não gostava” de Nadejda Mandelstam “como pessoa”. “O sofrimento não a enobreceu”, anotou a repórter no seu diário. Uma avaliação muita dura a respeito de uma pessoa que vivia num país em que havia fila para comprar alimentos, roupas e outras coisas. A rigor, a história de Nadejda Mandelstam, o que fez pela obra de Óssip Mandelstam e contra a ditadura stalinista, a enobreceu. Mesquinharias do cotidiano, por certo, não retiram seu brilho.

Nadejda Mandelstam contou a Martha Gellhorn que fez sexo com Óssip Mandelstan na mesma noite em que se conheceram, em 1919. Ela disse à repórter que não estava apaixonada pelo poeta. Foi um sexo, por assim dizer, casual.

No diário, Martha Gellhorn escreveu: “Estou começando a crer que, desde 1938 [ano da morte de Óssip Mandelstam], esta mulher expia o fato de não o haver amado o bastante quando estava vivo. Será uma ideia louca?” Louca, não é. Mas certamente, de alguma maneira, os dois se amavam. Era um amor físico e, com risco de parecer piegas, de alma. Um amor espiritual. Acrescente-se que Óssip Mandelstam a traía com frequência, o que nem a repórter nem Caroline Moorehead contam.

Quase sempre irritada, Martha Gellhorn contava os dias e a horas para voltar a Londres. O mundo de Nadejda Mandelstam — o mundo sem liberdade da União Soviética — a oprimia. A repórter chegou a ter medo. Afinal, americanos não eram bem-vindos na Moscou controlada, de maneira absoluta, pelos comunistas. Possivelmente, deve ter sido monitorada pelo KGB (K é comitê; masculino, portanto).

A escritora, a repórter e o medo do Grande Irmão

Nadejda Mandelstam, que, ao lado do marido, “enfrentou” Stálin e sobreviveu, perguntou para Martha Gellhorn “se, alguma vez, havia sentido medo”.

A repórter respondeu: “Não, só fúria”. Porém, no diário, se corrigiu: “Não é certo. Quero escapar [de Moscou]. A sensação é de puro temor do Grande Irmão”. Uma referência, indireta, ao KGB. Martha Gellhorn, por sinal, sempre viveu em países democráticos.

Martha Gellhorn não tinha medo quando fazia as coberturas de guerra — como na Guerra Civil Espanhola, na Segunda Guerra Mundial (esteve na Normandia) e na Guerra do Vietnã. Entretanto, assinala Caroline Moorehead, “tinha muito medo da prisão. Segundo dizia, era seu único e verdadeiro temor”.

A repórter tinha receio da polícia secreta, que, de alguma maneira, era o verdadeiro governo do país. Martha Gellhorn começou a recear que a KGB poderia aprisioná-la por ter conversado com uma vítima do stalinismo.

No aeroporto de Moscou, ao esperar seu voo para Londres, Martha Gellhorn fumou 12 cigarros.

Quando o avião levantou voo, a repórter pegou a revista da British Air e “leu com avidez”. Era uma publicação ruim, mas, para aliviar a ansiedade, leu com atenção.

Martha Gellhorn adorava viajar e viver em lugares diferentes, como a África (onde chegou a morar sozinha) e o México. Apreciava olhar a natureza, a arquitetura das cidades e, sobretudo, conversar com as pessoas. Em Moscou, não gostou de nada, nem das pessoas, que, certamente temerosas de estarem sendo vigiadas, perderam a espontaneidade tão admirada pela repórter.

Apesar de certos desencontros, Nadejda Mandelstam e Martha Gellhorn mantiveram a correspondência. Numa carta, a russa contou que estava doente, “com febre”, mas os médicos não sabiam o que tinha. “Não é câncer. Porém estou muita fraca.”

Nadejda Mandelstam disse que, talvez devido ao “tédio vital”, lia mas acabava por odiar os livros. “Dostoiévski me tem feito ficar pior.” Os russos, como os brasileiros, são um pouco melodramáticos. Mas a escritora havia mesmo sofrido muito.

Noutra carta, Nadejda Mandelstam deu uma espécie de conselho à repórter: “Você me disse que não pode escrever [Martha Gellhorn tinha bloqueios literários, vez ou outra]. Precisa de uma guerra para falar contra ela. Mas vale a pena tê-la? Eu não acredito. Desejo que se livre da depressão e deixe de ser reclusa”.

Martha Gellhorn adotou uma criança, o italiano Sandy — órfão da Segunda Guerra Mundial —, mas Nadejda Mandelstam não quis ter filhos. “A única coisa que me alegra é não ter tido filhos. Os jovens não dão satisfações. Quando encontro alguns, dou graças a Deus de que não seja meu”, escreveu a russa.

A repórter, que tinha muitos amigos, como Robert Capa (talvez seu maior amigo), Edna Gellhorn (a pessoa que mais amou), Eleanor Roosevelt (as duas se admiravam), Leonard Bernstein e Diana Cooper, e vários amores (dizia sentir escasso prazer sexual, inclusive com o ex-marido Ernest Hemingway; talvez sua grande paixão tenha sido David Gurewitsch, médico de Eleanor Roosevelt), “suspeitava”, frisa Caroline Moorehead, “que havia constituído uma desilusão para a sra. Mandelstam”.

Martha Gellhorn tinha o hábito de ajudar os amigos — inclusive enviando dinheiro àqueles que estivessem em dificuldades financeiras. Mesmo não muito animada com a visita em Moscou — a heroína que buscava havia se revelado uma mulher comum (e, na verdade, era incomum), com virtudes e defeitos —, a repórter, registra Caroline Moorehead, “redobrou seus esforços com editores e agentes literários em favor da sra. Mandelstam e, em determinadas ocasiões, lhe enviava livros e, às vezes, dinheiro”. Pouco a pouco, a correspondência cessou.

O que dizer a respeito do que se leu cima? Independentemente das falas, Martha Gellhorn e Nadejda Mandelstam eram, acima de tudo, grandes mulheres. Valentes como poucos homens. Por que as duas escreviam? Porque, de alguma maneira, acreditavam no poder da palavra para melhorar, pouco ou muito, o mundo.

(Está passando da hora de se publicar as memórias de Nadejda Mandelstam em português. Companhia das Letras, Editora 34 e Kalinka, que editam escritores russos no Brasil, poderiam publicá-las na língua de Graciliano Ramos, o Tchékhov dos romances.)

1

Leia mais sobre o poeta russo Óssip Mandeltam (https://tinyurl.com/33bb3zdc).

2

Leia sobre a visita de Martha Gellhorn ao Brasil (https://tinyurl.com/3cxtz6ne).

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