A ilusão da SAF e o duro despertar do futebol brasileiro

  • Por Lucas Mantovani

A transformação dos clubes brasileiros em Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs) surgiu como um sopro de modernidade, uma alternativa para tirar o futebol nacional do colapso financeiro e colocá-lo em um caminho sustentável. Mas a recuperação judicial do Vasco da Gama escancara um problema grave: esse modelo, por si só, não resolve má gestão, pois sem governança sólida e planejamento estratégico, a profissionalização prometida pelo modelo pode se tornar apenas um rótulo bonito para clubes que continuam cometendo os mesmos erros de sempre.

O Vasco, um dos clubes mais tradicionais do Brasil, adotou a SAF com a expectativa de reconstrução, mas viu sua dívida crescer para R$ 1,4 bilhão sob a administração da 777 Partners. O caso deixa claro que a entrada de investidores não garante sucesso se não houver controle rigoroso das finanças e um plano bem estruturado. A recuperação judicial pode dar um respiro momentâneo, mas também levanta um alerta: sem mudanças profundas na forma como os clubes são geridos, essa metodologia pode se tornar apenas mais um capítulo na crise do futebol brasileiro.

Por outro lado, exemplos como o do Cruzeiro mostram que há potencial quando a estratégia é bem aplicada. O ex-jogador de futebol Ronaldo Fenômeno assumiu o clube em 2022, reestruturou suas operações e, dois anos depois, vendeu sua participação por um valor doze vezes maior. Esse sucesso não veio apenas do dinheiro investido, mas de um modelo de gestão eficiente, com decisões estratégicas bem fundamentadas. O problema é que poucos clubes parecem seguir esse caminho e, no caso do Vasco, o que se viu foi a repetição de promessas vazias e expectativas frustradas.

A grande questão é que muitos clubes encaram a SAF como uma solução mágica, quando, na verdade, ela exige ainda mais responsabilidade, pois, sem governança sólida e transparência, o risco é apenas mascarar a crise por alguns anos, até que as dívidas e os problemas administrativos voltem à tona. A Lei nº 14.193, que instituiu esse formato, trouxe avanços, mas ainda há brechas que permitem que clubes sejam conduzidos de forma irresponsável, sem a fiscalização necessária para evitar colapsos como o do Vasco.

A falta de regulamentação mais rígida também preocupa. Hoje, um investidor pode assumir um clube, injetar dinheiro de forma desorganizada, comprometer o futuro da instituição e, depois, simplesmente sair de cena. Se não houver regras mais claras e mecanismos de controle eficazes, outros clubes podem seguir pelo mesmo caminho da recuperação judicial, transformando a SAF em um modelo tão falho quanto o anterior.

Além disso, é preciso discutir o impacto desse modelo no futebol como um todo. Se for utilizado apenas como uma ferramenta de especulação financeira, onde investidores buscam lucros rápidos sem um compromisso de longo prazo, os clubes podem perder sua identidade e sua conexão com os torcedores. O futebol não pode ser tratado apenas como um negócio frio e desumanizado, onde as paixões são ignoradas em nome de balanços financeiros. A profissionalização é necessária, mas não pode apagar a essência dos clubes.

É inegável que esse modelo pode ser um caminho para modernizar o futebol brasileiro, mas o modelo precisa ser encarado com seriedade. Adotar a estrutura empresarial sem adotar a mentalidade empresarial é um erro fatal. O futebol precisa entender que não basta trazer investidores – é preciso ter um projeto sólido, um time de gestores capacitados e um compromisso real com a sustentabilidade financeira. Caso contrário, a SAF será apenas um novo nome para a velha desordem.

O Vasco não é o primeiro, e dificilmente será o último a enfrentar esse dilema. A SAF pode ser um divisor de águas para o futebol brasileiro, mas isso só acontecerá quando os clubes entenderem que, sem responsabilidade e planejamento, não há modelo que resolva. O torcedor pode sonhar com um futuro melhor, mas, enquanto a gestão for tratada como um detalhe, o futebol brasileiro continuará oscilando entre promessas e frustrações.

  • Lucas Mantovani, advogado empresarial, sócio e co-fundador da SAFIE Consultoria
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