Eu ainda não digeri

Eu, mãe de uma menina com 9 anos de idade e com os primeiros sinais de puberdade e de um menino que ainda mama no peito, não digeri a série ‘Adolescência’. E se você ainda não viu, corre lá, lê minha crônica depois porque não há como falar dessa série sem spoiler. Neste momento, é a série mais vista em 71 países, com 93 milhões de horas assistidas e mais de 66 milhões de espectadores batendo recordes da Netflix. É necessária, dolorosa, assustadora (principalmente para mães e pais, eu acho). É visceral.

Meninas e mulheres morrem. Meninos e homens sofrem e matam. Entre as grandes perguntas que a série instalou na minha cabeça: como é que uma família comum cria um filho assassino? E antes de mais nada… não sou profissional de saúde. Sou só uma mãe, jornalista que tem como principal objetivo da vida criar bons seres humanos: felizes, honestos, funcionais, amorosos, autoconfiantes, sensíveis. A maior missão da minha vida, com certeza, é criar Cecília e Matheus e me orgulhar deles.

E hoje quero falar sobre a criação dos filhos (mais dos meninos que das meninas) e eu vi um vídeo da psicóloga Laura Oliveira (que eu amo) e que fez todo sentido pro que mais me pegou na série. Como criar um filho não misógino em uma sociedade completamente machista e que mata meninas e mulheres todos os dias?

Partindo do pressuposto que todo mundo que está lendo viu a série, vamos a três pontos importantes… Um menino pode matar mesmo não sendo doente ou psicopata. Assassinos podem ser criados em famílias comuns e isso é o que mais dói na série, podia ser na nossa casa. Não existe uma culpa única e simples.

Em resumo, sendo bem difícil resumir essa obra de arte: vivemos em uma sociedade que odeia mulheres, que sexualiza crianças e que acha impossível homens e mulheres serem amigos sem conotação sexual. Uma sociedade que romantiza o ciúme e que por centenas de anos ensinou aos meninos a guardarem sentimentos, a serem machistas, misóginos e agressivos.

No primeiro episódio eu falei com meu marido e pedi que ele também assistisse. Ele ainda não havia se interessado e meu algoritmo estava lotado de spoilers, comentários, análises. Nas postagens, assim como nos grupos da escola: mães, mães e mulheres e mães. Kadu assistiu, ficou desesperado tal qual a Catherine aqui.

Cirúrgica, Laura fala da dinâmica social em que vivemos e da necessidade de mudança de comportamento que não passa apenas pelas palavras ditas, mas pelo exemplo. Aquela máxima de que o exemplo arrasta… E tem um ponto no discurso da psicóloga da série que eu gostei demais. O menino Jamie explica que o pai não é violento e é questionado sobre as amizades que ele tem. O garoto diz que o pai não tem amigas mulheres, que respeita a mãe, algo nesse sentido. Não, esse não é o motivo porque não existe um só, mas é uma das milhões de camadas para refletirmos.

Eu sou uma mulher que tem zero ciúme. Zero de verdade. Acho brega, desnecessário, idiota e infantil sentir ciúme, mas eu sei que não é assim na maioria das famílias. Kadu tem amigas mulheres. Eu tenho amigos homens. E isso, que parece um detalhe, é só uma ponta. Vamos pensar juntos aqui. Como criar um menino que respeita e admira mulheres se ele não vê homens que são amigos de mulheres, que leem mulheres, que ouvem cantoras mulheres, se interessam por políticas mulheres, que admiram empresárias? Como criar um homem que tem relações de amizade, respeito e carinho se cada vez que um bebê se aproxima de uma menina, a gente diz que é namoradinha?

Outro dia Cecília foi a uma festa da escola, de um amigo. A sala toda foi chamada, mas ela foi a única menina que compareceu. Cecília é do ballet e do judô. Se mistura na turma sem pensar muito em como isso ocorre. É natural pra ela. Agora, meu caminho é outro. Matheus transitar do mesmo jeito que a irmã. Pra ela é inconcebível uma festa de aniversário só pras amigas porque ela tem dezenas de meninos entre os amigos prediletos. Eu desejo que pro Matheus seja também inconcebível uma festa sem amigas mulheres: de bebê até sempre. E o caminho é muito mais longo do que parece.

Não existe receita de bolo, infelizmente. Mas existem alguns pontos que a gente já conhece bem: telas monitoradas, carinho e afeto, exemplo, diálogo, educação e eu acrescento ainda uma pitada de fé. Que a discussão da série seja só um ponto de partida pro mundo todo questionar a criação das novas gerações. Que meu desespero de assistir esses quatro episódios me façam questionar cada movimento de uma educação que vai determinar quem são os homens e mulheres do futuro. E claro, eu sei bem dos meus privilégios.

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