Humor sem fronteiras: a Bahia tem um jeito

No fim dos anos 1980, entrava em cartaz o Recital da Novíssima Poesia Baiana, com o grupo Los Catedrásticos, em Salvador. O espetáculo alcançou sucesso imediato e provocou risos ao recitar letras de músicas populares. A montagem marcou a estreia da atriz Maria Menezes na companhia.Na mesma época, nasceu o comediante João Seu Pimenta, um dos nomes mais relevantes – e provocativos – da cena atual do humor no estado. Entre Maria e João, a Bahia já deu risada de muita gente e foi plateia para o crescimento de estrelas do humor, algumas com projeção nacional. No entanto, todos os profissionais do setor seguem unânimes: continua difícil ser comediante no estado.A atriz Renata Laurentino se orgulha de encher casas de eventos na capital baiana com o show de stand up comedy que protagoniza. O formato americano em que um único comediante se apresenta em pé, sem caracterização ou personagens, se tornou popular no Brasil a partir da segunda metade da década de 2000, com a notoriedade de grupos como o Clube da Comédia e elencos de programas de televisão como CQC. Foi nesta época que Renata começou a se apresentar em Salvador. “Eu fui fazendo”, diz. Com formação em improvisação teatral, ela encontrou uma cena soteropolitana de stand up ainda muito imatura.Renata se juntou a um grupo de outros comediantes iniciantes para convencer bares e casas de shows a permitirem que se apresentassem. “A gente se apoiava muito”, conta. No entanto, ela tinha um obstáculo a mais durante as negociações: no grupo de colegas, era a única mulher.”Quando eu ia mostrar meus projetos para os bares, eles sempre queriam saber quais homens iam dividir o palco comigo, como se mulher não vendesse ingresso”, lembra. Há 12 anos, quando começou a fazer stand up, Renata não podia fazer piadas que envolvessem política, futebol ou que diminuíssem os homens. “Diziam que eu não sabia o que estava falando, era uma dificuldade”.O cenário mudou significativamente, segundo a profissional. Os espaços para shows estão mais abertos ao stand up, houve um aumento do número de comediantes e o público está mais fiel. “Antes, eu sonhava com o que tenho hoje”.Renata pondera que, apesar das conquistas, a situação ainda não é das mais fáceis. “Eu não fico parada, mas sigo sem apoio de marcas, de publicidade, de patrocínio”. O comediante Tiago Banha concorda. “Tudo o que a gente conquista é resultado de um esforço nosso”, afirma. Formado em publicidade, o soteropolitano encontrou no stand up um meio de trabalhar com comunicação e humor, duas ferramentas fundamentais para ele. “A impressão que eu tenho é que o estado e algumas marcas não enxergam o que a gente faz como arte”, relata.O Vatapá Comedy Club, grupo de humor do qual Tiago participa, lotou a Concha Acústica do Teatro Castro Alves em julho do ano passado. “São cinco mil pessoas e foi sem nenhum patrocinador”.Outro membro do Vatapá, o comediante Matheus Buente diz que os humoristas “se viram em vários trabalhos” para conseguir se sustentar. Professor de História, o baiano percebeu que as aulas que dava em um cursinho pré-vestibular poderiam facilmente ser apresentações de stand up e partiu para a comédia. “Fiquei desempregado e fui experimentar”, conta o comediante, que tem 10 anos de carreira. Desde então, ele conciliou as atividades na sala de aula com os palcos. Só parou de dar aulas no ano passado: “As coisas se equilibraram mais”.Hoje, ele dá palestras sobre Educação, faz publicidade para marcas, além das apresentações de stand up. “Trabalho para conseguir monetizar a minha imagem”, diz. Matheus conta principalmente com as redes sociais para atingir este objetivo. Ele publica vídeos de humor diariamente nas páginas do Instagram e TikTok e, uma vez por semana, conteúdos de comédia mais longos no YouTube. Ainda dedica duas horas todos os dias para interagir com a audiência.Desafio

A atriz Maria Menezes estreia espetáculo-solo

|  Foto: Divulgação

A presença digital constante é algo que intimida Maria Menezes. Com mais de 30 anos de carreira, a sergipana admite que não considera muito as redes sociais quando pretende prospectar trabalhos. “Sou de uma época em que o ator era convidado para os projetos”, explica. “Hoje, o comediante é a própria empresa”.Conhecida do grande público principalmente pelos trabalhos na televisão e no teatro, Maria se viu recentemente à frente de um desafio ao produzir a primeira peça sozinha: “Foi como parir novamente”.Em 2023, a atriz estreou o monólogo Maria Ao Vivo! (Ou Mamãe Tá Aqui), que trata com bom humor de temas como casamento, gravidez e a vida da mulher contemporânea. “Produzir, assinar um texto, investir do meu dinheiro… Foi como assumir a minha maturidade de atriz, e olha quanto tempo demorou”.A iniciativa acompanhou as mudanças do mercado, segundo Maria. Para a humorista, a relação que criou com o público ao longo da carreira permite que ela não precise das redes sociais para conquistar novos trabalhos. “É um alívio porque não é minha praia”, reconhece. “O ator mais antigo está perdido nessa cena nova”.Ela admira a projeção que a internet oferece para os atores, especialmente os iniciantes e os que surgem de lugares com menos atenção dos veículos tradicionais. Esse é o caso de João Seu Pimenta. Nascido em Pojuca, cidade situada na Região Metropolitana de Salvador, o comediante soma dois milhões e meio de seguidores em redes como YouTube, Instagram e X (antigo Twitter).Nos perfis, o baiano faz publicações bem-humoradas com críticas à sociedade e relatos sobre a própria vida. Em um dos vídeos de maior audiência, com mais de 13 milhões de visualizações, João dança uma música de pagode com mensagens evangélicas.”Já fiquei conhecido por inúmeros formatos e acredito que a comédia sempre teve um papel fundamental em criticar sistemas de convenção social”, afirma João. “Mas, na minha vez de fazer isso, me chamam de militante, porque incomodo bastante e tenho orgulho disso”. As polêmicas ajudam a criar uma comunidade que não só compreende as mensagens do comediante, mas também o defende de qualquer ataque. “Fecho muito mais portas do que abro, porém as que eu abro tenho certeza que são as dos lugares em que eu deveria estar”.Migração

Renata Laurentino falou da cena da comédia em Salvador

|  Foto: Olga Leiria / Ag. A TARDE

O baiano Matheus Buente também tem aberto portas. No ano passado, o show solo do comediante passou por algumas cidades do Brasil como Rio de Janeiro, Aracaju e Recife. Segundo Matheus, é preciso sair de Salvador para conseguir se sustentar como humorista. Ele lembra os casos do ator Renato Piaba e da Cia Baiana de Patifaria, do sucesso A Bofetada, que ficou nos palcos por quase 30 anos.“Eles conseguiam se sustentar no teatro de Salvador, todo sábado e domingo, por meses”, aponta. “O público mudou de perfil, hoje o soteropolitano prefere investir o dinheiro do lazer em opções diversas”.Na opinião de Matheus, esse é um dos motivos que obriga comediantes a rodar o Brasil em busca de outros mercados mais aquecidos. Segundo Tiago Banha, é importante fidelizar o público local antes de cruzar as fronteiras.“Ter Salvador como pauta das piadas não é um obstáculo, é uma vantagem”, afirma. Ele não costuma adaptar o texto quando se apresenta para outros públicos fora da capital baiana. “As pessoas nos procuram pelo nosso sotaque, pela nossa vivência, então, não faz sentido alterar”, diz.Segundo João Seu Pimenta, manter os mesmos textos é uma questão de resistência. “Se um cara do Sudeste vem para cá, fala sobre o Rio Tietê e todo mundo entende, por que eu tenho que mudar meu texto quando falo da Caixa D’água do Tomba, em Feira de Santana?”, provoca o comediante. João ainda aponta que o humor da Bahia é visto como comédia regional se comparado ao paulista ou carioca, entendidos como estilos nacionais de comédia.Para Maria Menezes, produções como o filme O Paí, Ó, dirigido por Monique Gardenberg e com roteiro baseado no espetáculo do Bando de Teatro Olodum, ajudaram a tornar o humor baiano mais conhecido em todo o país. As redes sociais continuam com o trabalho de pulverização deste estilo, ainda segundo a atriz. “A comédia baiana não é mais local, todo mundo quer falar ‘lá ele’, sem nem saber o que significa direito, porque é legal ser daqui”. Para Maria, é o trabalho dos atores e companhias que fortalece e divulga a cena local.De acordo com João, o melhor ensinamento para lidar com as dificuldades e possíveis críticas está no texto que assina e apresenta ao público: “Ataco não quem já sofre, mas quem faz sofrer”. Ele agradece a audiência que assiste aos vídeos que publica e está presente nos shows, afinal, é ela quem viabiliza novos voos. “A melhor resposta quem dá é o público, no fim das contas”.

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