Baiano mal traduzido

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Por Gustavo Mariani*

Na época do governo Fernando Henrique Cardoso, houve uma programação cultural aqui em Brasília, para a qual vieram, entre outros, o amazonense Boi de Parintins, o afoxé baiano Filhos de Gandhi e os cantores Daniela Mercuri e Gilberto Gil. Pelo final do primeiro dia de apresentações, a Comunidade Solidária da Dona Ruth Cardoso (quem quisesse brigar com ela era só chama-la por primeira-dama) ofereceu um coquetel aos artistas e à imprensa, na Granja do Toto, a antiga residência do presidente João Figueiredo, que a preferia para montar a cavalo. Desprezava o Palácio da Alvorada.

 Lá pelas tantas, cheguei no Gilberto Gil, que já tinha respondido tudo o que os meus colegas haviam lhe perguntado sobre o seu show – no dia seguinte – falei-lhe de que gostaria de saber da verdadeira história da “marcha contra as guitarras elétricas” que rolara em São Paulo, na época do iê-iê-iê, pois já havia lido várias versões diferentes.

 Calmamente, com uma pausa danada pra falar, ele respondeu-me que fora uma forma de apoiar Elis Regina que estava ameaçada (pela TV Record-SP),  de ter o seu programa (Dois na Bossa, com Jair Rodrigues), tirado do ar, por causa de  queda da audiência que vinha sendo dominada pelos programas dos cabeludos, principalmente Roberto Carlos e Ronie Von. Papo vai, papo vem, no meio dele, falei com o Gil de que não entendia ele, um dia, tocar fogo nas guitarras elétricas e, no outro, ser o primeiro a introduzi-las na música popular brasileira – por Domingo no Parque, acompanhado por Os Mutantes. Ele mandou isso pra mim:

  –  Foi  uma forma heideggeriana de passar menagens fundamentais. A nossa tarefa cultural-industrial-religiosa era tocar fogo no lixo cultural, com simplicidade, trombetas e um Exu Mensageiro, sempre emoliente, tratando de cataclismos, epicentros, apocalipse e da tropicália com caráter hot” – ainda bem que tenho isso guardado e gravado em antiga fita cassete.

Como não entendi nada do que ele falou, escrevi mas maluquice, ainda, por  minha matéria do Jornal de Brasília. No dia seguinte, no encerramento da programação, topo com o Gil ensaiando, com o seu violão, antes da sua apresentação. Ao me ver passando, pela área permitida à imprensa, gritou-me. Parei, olhei e ele disse:

– Meu bom! Onde você arrumou aquilo tudo que eu não falei?

– Foi o que entendi de tudo o que você falou – respondi.

-Tisconjuro! – baianizou no vernáculo e ficou por aquilo.

Algum tempo depois, Rita Lee estava em Brasilia pra fazer show e pedi a pauta da sua coletiva à imprensa. Depois que todos fizeram as suas indagações, disse-lhe que eu queria perguntar algo fora do contexto, sobre a “passeada contra as guitarras elétricas”, E falei-lhe sobre o que o Gilberto Gil havia me falado. Ela respondeu:      

– Se o baiano falou, tá falado, mêu! Não me lembro de nada. Por aquele tempo, eu vivia chapadaça.

Era a primeira vez que a Rita Lee falava em público de já ter queimado algo, o que significava “viver chapadaça”. Só que a editora da minha matéria cortou a declaração, sob a alegação de que “aquilo era um mau exemplo para os jovens”. E a matéria terminou insossa, em: “Se o baiano falou, tá falado, mêu! Não me lembro de nada”.

 Mais de duas décadas depois, Rita Lee escreveu em um livro contando que, ao ter o seu apartamento invadido pela polícia, à procura de maconha, quando foi presa, ela disse para os meganhas: “Se vocês tivessem vindo aqui há um mês teriam encontrariam muitos tocos de baseado. Mas, desde que fiquei grávida, nuca mais acendi nada”.

 Quer dizer: um furo de reportagem caiu nas minhas mãos, mas uma editora conservadora me tirou do lance. Esta mesma editora, tempos depois, podou de uma outra matéria minha a frase “Karl Max saía pra beber com amigos e, quando voltava, bêbado, brigava em casa. Não raro, metia a porrada na mulher”. Segundo ela, a palavra “porrada” estava proibida pelo manual de reportagem do jornal – que nunca existiu.    

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