Maria Fernanda Cândido encarna a fluidez de Clarice Lispector em espetáculo

maria fernanda

GUSTAVO ZEITEL
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Desde que chegou de Paris, onde mora há seis anos, Maria Fernanda Cândido passa horas em seu camarim, no porão do Teatro-D-Jaraguá. Sentada numa poltrona, a atriz mostra apreço por seus recentes achados literários, descobertos em livrarias da capital francesa.

Entre eles, uma antologia bilíngue de poetas russos, que ela folheia, deixando ver os seus grifos. “A beleza é sempre positiva, é uma moeda mundial”, diz ela. “Ser bonita abre portas, mas não as mantém abertas. A trajetória de uma vida não será feita por causa da beleza somente.”

Aos 50 anos, a atriz não se importa com a pressão estética da sociedade, expressão agora debatida na internet. “Eu não pego isso para mim”, diz, enquanto passa rímel, diante do espelho, minutos antes do ensaio fotográfico.

Considerada uma das mulheres mais belas do século, segundo uma enquete feita pelo Fantástico, da Globo, Cândido prefere se atentar à literatura. Neste sábado, a atriz inaugura a nova sala de espetáculos, que fica na Consolação, região central da capital paulista, estreando a peça “Balada Acima do Abismo”.

Trata-se de uma colagem de textos de Clarice Lispector, autora que marcou a sua adolescência. O projeto se iniciou há quatro anos, na forma de um recital, realizado na Embaixada do Brasil, na França, em homenagem ao centenário da autora. Desde então, cumpriu temporadas em Paris.

“Percebo um movimento de descoberta da obra de Clarice na França, sobretudo entre jovens adultos, que ficam muito curiosos e querem saber de quem são esses textos”, afirma a atriz. Por ironia, só agora o espetáculo será apresentado ao público na língua em que Clarice escreveu seus livros.

“Quando muda a língua, tudo muda, e é claro que o português é melhor. Nos textos dela a tradução nunca é exata. Os franceses tentam corrigir as transgressões gramaticais dela, e a gente tem de barrar esse ímpeto, porque isso é a obra da Clarice”, diz.

A dramaturgia de Catarina Brandão se concentra nos contos “A Repartição dos Pães”, “E Para Lá que Eu Vou” e “Restos de Carnaval”, resgatando também entrevistas encontradas na imprensa. “Balada Acima do Abismo” combina as passagens determinantes da biografia de Clarice a uma investigação das obras selecionadas.

O nome do espetáculo tem origem num poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado no Jornal do Brasil, em 1977, um dia depois da morte da escritora e do dia de seu aniversário. No poema, Drummond ressaltava o misticismo, característica da literatura clariceana que ainda seduz novas gerações de leitores.

Em especial, “Balada Acima do Abismo” replica uma ideia de indeterminação, que perpassa todo o projeto literário de Clarice, em diferentes instâncias. De início, a obra da escritora é marcada por um hibridismo de gêneros. Alguns contos, por exemplo, podem ser entendidos como crônicas e vice-versa.

Ao resumir “Água Viva”, lançado no ano de 1973, como uma ficção, Clarice mais expunha seu gosto pela dúvida do que resolvia o impasse. Não é romance, conto e muito menos ensaio. Por isso, a água, imagem recorrente em sua obra, plasma em que se dispersa o universo da autora. De modo análogo, não é possível identificar, na costura dos textos de “Balada Acima do Abismo”, onde começam e terminam os contos.

Sobretudo, não se sabe quem é a mulher em cena. É um “eu” em constante devir. Nas passagens biográficas, Cândido assume a primeira pessoa do singular, como se fosse a escritora. Lendo os contos, encarna as personagens ou se distancia delas, sendo narradora.

A peça é um monólogo, mas Cândido não está sozinha em cena. Ela divide o palco com a pianista Sonia Rubinsky, importante especialista da obra do compositor Heitor Villa-Lobos. A música que será interpretada tem estreita relação com a palavra falada.

“Esses textos de Clarice têm uma particular fluidez, existe um respirar das frases e tudo o que um músico quer é isso”, afirma Rubinsky, que venceu, há 16 anos, o Grammy Latino. Além de obras de Villa-Lobos,
ela tocará peças de outro brasileiro, Alberto Nepomuceno, e do russo Sergei Rachmaninov.

São modos de evocar a atmosfera enigmática dos contos. Para Cândido, o mundo de Clarice parece menos estranho agora. Há dois anos, ela viveu o papel-título do filme “A Paixão Segundo G.H.”, adaptação do romance de 1964, dirigida por Luiz Fernando Carvalho.

A atriz afirma que a peça e o filme são bem diferentes entre si, mas se ligam nos temas que caracterizam o universo da autora, como a busca pelo sentido da vida. Cândido reconhece a importância que o cinema teve em sua vida, desde que trocou o mundo da moda pela arte.

Modelo das grifes Dior e Prada, ela teve aulas, ao longo de dois anos, no estúdio de Fátima Toledo, controversa preparadora de elenco, acusada de praticar abuso físico e psicológico em sua metodologia.

Segundo Denise Weinberg, atriz que diz ter sido torturada pela preparadora no set do filme “Linha de Passe”, os exercícios aplicados incluíam pé no pescoço, xingamentos e humilhações. Cândido ri da fama de má de sua professora e diz que gostava das aulas. “Entendo o processo dela, sou grata a ela. É claro que tem desconforto, porque é um jeito de trabalhar que vai mexer em muitas feridas nos exercícios”, conta a atriz.

De todo modo, se sente honrada ao inaugurar o Teatro D-Jaraguá, que fica no subsolo do hotel Jaraguá, construído em 1953. O projeto do francês Jacques Pilon abrigou até os anos 1970 o jornal O Estado de S.Paulo.

A sala de espetáculos continua o projeto do Teatro-D, que fechou as suas portas, no Itaim Bibi, há seis anos. O teatro tem capacidade para 260 pessoas e um palco italiano. Até o fim do ano passado, o espaço era usado para eventos corporativos.

A encenação de um espetáculo sobre Clarice vindo da Europa reacende o debate sobre a recepção da obra da escritora no exterior. A França é um caso particular. Nos anos 1970, a crítica literária feminista Hélène Cixous, entusiasmada com a leitura de “A Paixão Segundo G.H.”, passou a organizar seminários sobre a obra da ficcionista.

Naquela altura, já existiam traduções de Clarice para o francês, mas os ensaios escritos por Cixous foram determinantes para que mais pessoas a lessem no país. Professor de teoria literária e literatura comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, João Camillo Penna esteve nos seminários de Cixous e pesquisa a obra da ensaísta.

“O feminismo francês é essencial para a leitura crítica sobre Clarice. Não existe uma apropriação feminista da obra de Clarice, porque ela não pode ser apropriada”, afirma Penna. “Não se trata de militância, é preciso entrar em contato com os livros sem preconceito com o feminismo.”

Diante dos estudos de Cixous, o pesquisador desfaz mitos difundidos até hoje. Penna afirma que a escrita de Clarice não é tão influenciada pelo existencialismo de matriz sartriana, estando mais ligado aos filósofos pós-estruturalistas. Ele conta também que Clarice não deve ser vista, conforme transmitido nas escolas, como a escritora das epifanias. “Existe um acervo de leitores de Clarice na França, inclusive porque ela é também um fenômeno comercial”, diz.

BALADA ACIMA DO ABISMO

  • Quando Qui a sáb, às 20h, e dom., às 19h. Até 9 de fevereiro
  • Onde Teatro D-Jaraguá – r. Martins Fontes, 71, São Paulo
  • Preço R$ 150
  • Classificação Livre
  • Link: https://bileto.sympla.com.br/event/101947/d/295604/s/2016026
Adicionar aos favoritos o Link permanente.